As três marias, estrelas alinhadas que são referência no céu do hemisfério sul, parte da constelação Orion, têm brilhos diferentes. Uma irradia uma luz mais firme, outra é mais fugidia ou mais hesitante: assim também é a personalidade das três amigas que compõem o romance mais autobiográfico da brasileira Rachel de Queiroz, lançado em 1939.
O apelido é dado logo no início do livro por uma freira do colégio interno em que se passa a primeira metade da história: por estarem sempre juntas, em todos os cantos, Maria José, Maria Augusta e Glória foram logo designadas como As Três Marias, título do livro.
(…) nossa comparação com as estrelas foi como uma embriaguez nova, um pretexto para fantasias, e devaneios. (…) À noite, ficávamos no pátio, olhando as nossas estrelas, identificando-nos com elas. Glória era a primeira, rutilante e próxima. Maria José escolheu a da outra ponta, pequenina e tremente. E a mim me coube a do meio, a melhor delas, talvez; uma estrela serena de luz azulada, que seria decerto algum tranquilo sol aquecendo mundos distantes, mundos felizes, que eu só imaginava noturnos e lunares.
A história é narrada em primeira pessoa por Maria Augusta, ou Guta, como a personagem prefere se apresentar. Depois da morte da mãe e do casamento do pai com uma madrasta correta e bondosa, mas com a qual ela não se identifica, Guta é enviada para o colégio interno.
Seu único escape da rotina e das regras rígidas é a amizade das três, que se fortalece pelos dramas comuns e também por suas diferenças. Glória é órfã de mãe e pai, e veste seu luto com uma naturalidade que chega a espantar. Já Maria José teve a família abandonada pela figura paterna, que foi viver com outra mulher e deixou a esposa sozinha para sustentar os filhos pequenos.
O desfile de conflitos cotidianos, que se estende para as demais meninas do colégio – uma, de temperamento rebelde, acaba “se perdendo” na vida, outra faz um péssimo casamento por se agarrar à primeira possibilidade de ascensão social – mostra de certa forma a impotência das mulheres diante das esparsas opções que tinham diante de si. Entre o matrimônio e a vida religiosa, quem não tinha vocação para uma ou outra coisa acaba em uma vida desgarrada da sociedade.
Nesses destinos entrecruzados, o perfil de Guta se aproxima cada vez mais do da própria autora. Com a formatura do colégio, a personagem volta para casa, mas não aceita os deveres que lhe são impostos pela madrasta na arrumação da casa, na cozinha, as tentativas de lhe ensinar como é cuidar de um lar. Guta decide voltar para Fortaleza, com um emprego de datilógrafa, dividindo o quarto com Maria José, que precisa ajudar nas despesas da casa e no sustento dos irmãos.
Rachel de Queiroz dizia não ser feminista, uma afirmação que acaba rebatida por Heloísa Buarque de Hollanda no posfácio da edição lançada pela TAG Livros, para quem a obra da autora talvez seja “nossa grande literatura feminista avant la lettre”.
Suas personagens, de fato, são bastante progressistas, assim como o foi colocar as mulheres no centro de um romance na primeira metade do século passado, quando a literatura era toda dominada por vozes masculinas.
Mais interessante ainda neste livro em que as mulheres são protagonistas é o fato de que os papéis masculinos na vida das três garotas estão quase sempre relegados a segundo plano. A todos os homens que aparecem nesta narrativa falta determinação, protagonismo: parecem repetir as mesmas histórias de traição e derrocada que ouvimos há décadas, enquanto as mulheres descobrem que podem ter destinos diferentes, solteiras, crentes, casadas, amadas, amantes, emancipadas.
Enquanto Glória vive um casamento feliz, com a mesma devoção ao matrimônio que antes dedicava ao seu luto, e Maria José segue um caminho religioso, Guta prefere a experimentação. Se envolve com um pintor mais velho, enfrenta o suicídio de um amigo próximo, flerta ela mesma com a ideia da morte, se apaixona no Rio de Janeiro, em uma vida mais livre do que imagina possível. Neste romance de formação sentimental de uma geração de mulheres, Queiroz já mostrava o poder da emancipação feminina, décadas antes que esse fosse uma tema debatido pela sociedade.
As Três Irmãs também marcou, de certa forma, uma virada na produção literatura de Queiroz, por ter um cunho muito mais autobiográfico do que suas obras anteriores, como O Quinze. Rachel também não se conformou com a vida de fazenda, mudou-se para o Rio de Janeiro e se tornou escritora, em um ambiente dominado por homens.
Ficou interessado em conhecer mais sobre a autora? Recomendamos muito a leitura de O Memorial de Maria Moura. Além disso, em breve a editora José Olympio irá relançar As Três Marias, provavelmente em homenagem aos 15 anos da morte da autora, em 2003, aos 93 anos.
Tainara Machado
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