De Duas, Uma (Editora Todavia, 104 páginas), breve romance do escritor mexicano Daniel Sada, é um sopro de originalidade para literatura latino-americana contemporânea. A partir de uma trama simples e uma linguagem direta, Sada constrói uma narrativa que, enquanto se desenvolve, não abre brechas para divagações, nem dele nem do leitor. Por outro lado, oferece uma infinidade de interpretações quando termina. Não fosse pela ausência de criaturas antropomórficas, o romance se assemelharia bastante ao gênero de fábulas.
As irmãs Gamal, gêmeas idênticas, são habitantes de uma cidadezinha do interior do México, onde trabalham como costureiras e vivem de forma austera, poupando com sabedoria seus rendimentos. Ficaram órfãs ainda jovens e foram cuidadas pela tia Soledad até que alcançassem idade suficiente para tomar as rédeas de seu destino.
A cada dia mais parecidas, Gloria e Constitución levam uma vida sem sobressaltos, encerradas em um universo apenas seu. No ateliê de costura, há uma placa que diz: “SOMOS PROFISSIONAIS OCUPADAS. LIMITE-SE AO QUE LHE DIZ RESPEITO. NÃO VENHA NOS DISTRAIR SEM MOTIVO. ATENCIOSAMENTE, AS IRMÃS GAMAL”.
O conflito começa quando tia Soledad convida as duas para uma festa de casamento da família, segundo ela, uma oportunidade imperdível para arrumar maridos. As gêmeas, não querendo deixar o ateliê abandonado e firmes na ideia de que o que é de uma pertence à outra, decidem que apenas uma delas irá a festa e, caso o pretendente apareça, elas embarcariam juntas nesse relacionamento:
Partindo da premissa de que as duas estavam enlaçadas desde o ventre materno, que tinham lutado tanto para viverem simplesmente como duas gotas d’água. Duas metades que eram desde sempre uma mesma semente, uma só pureza e uma só rota. Não, não podiam se separar e uma mudança a esta altura, como seria?
Constitución, depois de um jogo de cara ou coroa, ganha o direito de ir à festa e, conforme previsto por Soledad, ela atrai os olhares de um pretendente, Oscar. Em Ocampo, Gloria aguarda a irmã já um pouco contrariada pelo seu azar. Teve que trabalhar em dobro e ainda é obrigada a escutar as boas novas de Constitución. Por mais que tivessem estabelecido um trato, quando o romance entra em cena, é inevitável que a história se complique.
A cada semana, uma delas se encontra com Oscar, fingindo ser a mesma pessoa. Aos poucos, a relação se encaminha para um compromisso mais sério, ameaçando a possibilidade de manter intacta a unidade que as une desde o ventre. A redoma que as gêmeas construíram ao longo dos anos é invadida por uma avalanche de sentimentos até então estranhos – paixão, ciúme e inveja.
A linguagem que Sada escolhe para narrar essa trama é certeira. Além de um vocabulário enxuto e bastante direto, o escritor cunha um estilo próprio de pontuação, abusando, por exemplo, do uso de dois pontos no lugar de vírgulas ou pontos finais. Uma escolha que se encaixa perfeitamente na oralidade e no ritmo que ele busca para narrativa: fatos encadeados, contados como uma história que se relata a um amigo, sem espaço para digressões que retardem o desfecho da trama. Em uma entrevista citada no posfácio desta edição, Sada revela:
Uma das mudanças em relação aos meus livros anteriores consistiu em utilizar frases curtas, diálogos e sobretudo me restringir exclusivamente à história, sem divagações de nenhum tipo. A intenção é colocar o leitor de imediato na anedota. [Antes] sempre se impunha o “como”, e o leitor tinha que descobrir a história entre os sortilégios da linguagem.
Se a leitura flui rapidamente, na ânsia por descobrir o destino das duas irmãs, o final guarda várias reflexões acerca das prisões em que, mesmo inconscientemente, as pessoas se encerram por receio de dar um passo em falso. A semelhança das duas irmãs é como uma âncora que as mantém presas à uma realidade confortável e segura, embora carente de emoções.
Daniel Sada foi uma grata surpresa da literatura latino-americana, que a editora Todavia trouxe neste ano para os leitores brasileiros. Embora tenha falecido precocemente em 2011, ainda há outras obras que esperamos ver, em breve, por aqui.
Mariane Domingos
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