Em outubro, a Academia Sueca anunciou o escritor nipo-britânico Kazuo Ishiguro como o vencedor do Prêmio Nobel de Literatura por “seus romances de grande força emocional, que revelaram o abismo sob nossa sensação ilusória de conexão com o mundo”. Se acertaram ou não no prêmio, é uma questão polêmica, mas não há dúvidas de que definiram com acurácia sua obra.
Não Me Abandone Jamais conta a história de três amigos de infância, Kath (a narradora), Ruth e Tommy. Eles cresceram em Hailsham, uma espécie de internato, que, à primeira vista, parece um colégio comum, mas, na verdade, esconde vários mistérios. Aquelas crianças têm algo de especial, que só é revelado a elas, e aos leitores, à medida que a história avança.
Nesse sentido, a narrativa de Ishiguro é um tanto enfadonha. Apenas por volta da página 100, o primeiro grande enigma é revelado. E, diferente de outras obras em que os silêncios e as insinuações formam um sofisticado enredo, nesse caso, não há um quebra-cabeça desafiador, que envolve o leitor. Por vezes, parece que existem apenas pontas soltas e nenhum fio condutor.
Outro aspecto que desabona o texto de Ishiguro é a artificialidade com que ele insiste em organizar as lembranças da narradora. Grandes escritores já se destacaram pela habilidade com que trabalham a memória. No entanto, não é essa destreza que o texto de Ishiguro transparece. Em vez de dar vazão aos fluxos de memória da personagem e encontrar o brilho de sua literatura nesse caos, o autor opta pelo caminho mais seguro e menos original da ordem cronológica. Não são poucos os trechos em que ele lança mão de deixas como esta:
Agora eu quero falar da viagem a Norfolk e de tudo quanto aconteceu naquele dia, mas, antes, preciso voltar um pouco no tempo para lhe dar os antecedentes e explicar o motivo de nossa ida.
A memória é incontrolável e é justamente nessa característica que reside todo seu charme literário. Basta lembrar de autores como Marcel Proust, Alan Pauls, John Banville e Alejandro Zambra. Eles sabem disfarçar o controle do texto. O fluxo de suas escritas parece seguir os caprichos da memória, muito embora eles estejam, desde a primeira linha, no domínio da narrativa.
Feitas essas ressalvas, é importante reconhecer os méritos deste romance de Ishiguro. Conforme os personagens crescem e seus dilemas amadurecem, tornam-se mais claras as abordagens do escritor. A partir da trajetória de Kath, Ruth e Tommy, Ishiguro desenvolve ótimas reflexões sobre temas universais, como diversidade, solidão, destino e livre-arbítrio.
As crianças de Hailsham são especiais e têm um futuro traçado desde o seu nascimento. A situação em que vivem é uma espécie de distopia que traz à tona o egoísmo humano e sua capacidade de distorcer a ideia de igualdade, quando a diferença se mostra vantajosa.
É impossível não sentir empatia pela expectativa angustiante que esses três amigos vivenciam. Kath e Tommy são mais conscientes dos mistérios que os rondam. Já Ruth prefere se alienar e seguir a rota. No entanto, no momento em que o destino chega, todos são abatidos pela impotência. Ishiguro constrói, assim, uma interessante metáfora do eterno dilema do ser humano com a morte: viver é trilhar caminhos incertos, sob a sombra de um fim certo.
Apesar de não apresentar uma prosa muito sofisticada, Ishiguro demonstra seu valor ao mergulhar na ficção para jogar luz sobre a realidade. Depois do Nobel de Bob Dylan, não posso negar que vejo com bons olhos o retorno da premiação à literatura, mas ainda espero um retorno triunfal, com um mestre inquestionável das palavras.
ps.: Não Me Abandone Jamais foi adaptado para o cinema e o filme, estrelado por Keira Knightley, Carey Mulligan e Andrew Garfield, está disponível no Netflix!
Mariane Domingos
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29 de janeiro de 2020 at 19:12
O seu texto Mariane é igual ao livro do Ishiguro, enfadonha.
10 de maio de 2020 at 22:52
Olá, Juliana. Tudo bem? Obrigada pela visita ao blog. Você também achou o livro do Ishiguro enfadonho? O que você menos gostou? E o meu texto, você conseguiu chegar ao final ou perdi você nos primeiros parágrafos, rs? Como quero que o blog seja uma experiência legal para quem lê, assim como é para mim, quando escrevo, estou aberta a ouvir suas dicas e melhorar. Deixe aqui nos comentários seus argumentos, por favor. Abraços 🙂 ps.: Pelo menos não estou concorrendo ao Nobel, não é? Acho que sua decepção seria maior, rs!
31 de janeiro de 2020 at 14:15
Apesar de não apresentar uma prosa muito sofisticada…
A sua escrita é sofisticada?
Quantos Nobel você ganhou?
Ter opiniao é importante mas o mais importante é ter ética ao escrever um texto,
“valorizar, honrar e dignificar a profissão” sendo a sua como jornalista / escritor ou a do próximo.
10 de maio de 2020 at 22:52
Olá, Renato. Como vai? Obrigada pela sua visita. Desculpe-me pela demora em responder. Estivemos ausentes por um longo período do blog.
À sua primeira pergunta, a resposta é não. Não considero minha escrita sofisticada, porém esse não é um requisito nem para minha profissão e nem para o blog, que, vale lembrar, levo como um hobby. Minha escrita, seja como jornalista ou como leitora que escreve sobre livros, precisa ser objetiva, clara e prezar pela boa gramática (confesso que, às vezes, dou uma escorregada nesse ponto, mas garanto que estou sempre aberta a corrigir e a aprender). No entanto, não vejo como isso invalida minha opinião em relação ao livro. Não me considero exigente demais por esperar sofisticação na escrita de um Nobel de Literatura.
Quanto à sua segunda pergunta, a resposta também é não. Não tenho nenhum Nobel. E mais: não está nem entre minhas ambições. Escritores escrevem para leitores (a maioria deles sem Nobel, vale ressaltar). Se para legitimar um olhar crítico sobre a obra de um Nobel é preciso ter um Nobel, então praticamente nenhum leitor pode emitir sua opinião.
E à sua terceira colocação, é minha vez de fazer uma pergunta: onde faltou ética? Onde faltou “valorizar, dignificar e honrar” uma profissão? Este blog inteiro é praticamente uma declaração de amor à literatura e ao trabalho do escritor, em um país em que pouco ou quase nada se investe em literatura. Neste texto, apresentei pontos negativos e positivos do livro, justifiquei meus argumentos e nunca reivindiquei outra posição que não a minha: a de leitora. Uma leitora que, neste caso específico, não amou um livro. Acredito que estou em todo meu direito de fazê-lo, assim como você está no seu direito de comentar este post discordando, dizendo que gostou da leitura e justificando seus argumentos.
Em vez de propor essa troca, que a meu ver seria muito mais produtiva, seu comentário se preocupou mais em atacar meu post e questionar minha legitimidade enquanto leitora. Se sua manifestação tinha essa intenção, acho que nosso diálogo termina aqui. Agora, se quiser ter um papo sobre literatura, me falar mais sobre a obra de Ishiguro e até me indicar outras leituras dele, fique à vontade para deixar nos comentários! 🙂
9 de outubro de 2020 at 09:35
Mariane eu percebo aqui, que esta muito difícil se expressar on-line. Sempre aparece alguém para criticar; mas quase nunca para elogiar.
A liberdade de expressão deveria ser respeitada e defendida por todos…
Muito obrigado por sua resenha e parabéns pelo blog.
12 de outubro de 2020 at 20:23
Muito obrigada pelo comentário, Sandro! Fico feliz que tenha gostado da resenha e da proposta do blog.
13 de fevereiro de 2021 at 18:37
Achei que somente eu estivesse achando o livro meio maçante rsrs gostei muito da sua resenha! E nem sempre um livro maravilhoso ganha Nobel, assim como, nem sempre obras que ganham Nobel são legais…
15 de fevereiro de 2021 at 18:11
Exatamente, Ana Paula! Obrigada pelo comentário e pela visita ao blog 🙂
9 de março de 2021 at 12:38
Adorei sua sinceridade. Muito difícil criticar obras que ganham prêmios.
Parabéns.
14 de março de 2021 at 22:51
🙂 Cada livro toca cada pessoa de um jeito diferente, né? Obrigada pela visita ao blog e pelo comentário, Gabrielle!