A folha de rosto de A Noite da Espera, novo romance de Milton Hatoum que chega às livrarias pela Companhia das Letras, traz o seguinte verso do poeta sírio Adonis:
A solidão é a tinta da viagem.
Martim, o jovem narrador desse romance, primeira parte da trilogia O Lugar Mais Sombrio, descobrirá essa verdade rapidamente. Depois da separação dos pais, é levado a se mudar para Brasília na companhia do pai. Deixando o ambiente que lhe é familiar, a capital recém-criada, ainda quase vazia e marcada pela tensão do golpe militar de 64, é um reflexo do cotidiano que Martim enfrenta em casa: a aridez da figura paterna acentua a distância da mãe que dá notícias apenas esporadicamente, a partir de um sítio escondido do qual se sabe muito pouco.
Na contracapa desta edição, que recebemos autografada por Hatoum (pulinhos de alegria!), a crítica literária Leyla Perrone-Moisés comenta que da multidão de escreventes que temos hoje, poucos merecem o título de escritor, qualificativo que ela atribui ao escritor amazonense. Sem dúvidas, Hatoum é uma das mais potentes vozes no cenário literário brasileiro, capaz de se reinventar a cada novo romance.
Depois de ter concentrado praticamente toda sua obra em Manaus, cidade onde nasceu, Hatoum passa a explorar novos ares neste romance, revisitando dois lugares marcantes em sua vida: Brasília e Paris. Em A Noite da Espera, Hatoum também adotou uma voz mais fragmentada, em que a narrativa consolida cartas, anotações e comentários revisitados à distância – temporal e espacial.
Para Hatoum, o processo criativo é demorado e lento, como ele contou nesta excelente entrevista para o Nexo. De Órfãos do Eldorado, seu último romance, a este lançamento, se passaram nove anos. Para ele, ter estabelecido como será a estrutura do romance é essencial para que se ponha a escrever.
Foi seu próprio editor, Luiz Schwarcz, quem levou o romance a demorar mais cinco anos para sair do forno. A história, que originalmente era narrada, por uma franco-brasileira, ganhou a voz de Martim e se transformou em uma trilogia, como contou Hatoum nesta entrevista ao jornal Estado de S. Paulo.
Martim, que revisita seus anos em Brasília exilado em Paris, lida o tempo todo com um lugar bastante sombrio, a solidão. O isolamento imposto pelo pai e a distância que o separa da mãe o levam a uma busca constante por respostas, que por vezes passam por sua mão, mas ele deixa escorrer entre os dedos.
A capital federal ainda semi-habitada, pano de fundo do livro, potencializa a tensão familiar. Aos poucos, Martim se aproxima de um grupo de estudantes e orbita o movimento de resistência à ditadura militar, sem nunca realmente tomar posição. Enquanto os personagens que o cercam são todos tomados pelo espírito contestador e fantasioso, não importa a classe social, Martim parece caminhar a reboque das decisões alheias, perseguindo sempre um ideal feminino de conforto e cuidado que nunca está presente. A política é elemento central para o rumo da história do garoto, mas o verdadeiro eixo do romance é a formação sentimental do jovem Martim.
O romance é também um delicioso mergulho na literatura, enquanto o personagem principal descobre poetas e correntes de pensamento, influenciado por personagens particularmente interessantes, como Jorge Alegre, o dono da livraria Encontro, no qual o personagem trabalha, e o embaixador Faisão, pai de um amigo, afastado do Itamaraty e à beira da loucura em sua reclusão em casa.
Embora se trate essencialmente de um romance de formação sentimental, os ecos do momento político, do acirramento da ditadura militar, com o Ato Institucional (AI) 5 de 1969, permeiam todo o livro. Enquanto a tensão se acirra – das primeiras prisões à cassação dos políticos, fechamento de universidades e perseguição aos artistas – é difícil não enxergar paralelos com a realidade atual, com a polarização da sociedade.
Certa vez, Martim ouve uma discussão na casa da tia de uma amiga, mulher influente que transita pela nata da política brasiliense:
“O que você prefere: um governo rígido mas honesto num Brasil próspero, ou um regime comunista totalitário num país estagnado?”.
O velho gaúcho respondeu com uma segurança serena: “Uma rede de criminosos que rasgou a Constituição pode ser chamada de governo honesto e rígido?”.
Hatoum também usa com maestria os elementos da cidade para ambientar os personagens, como já fazia com Manaus. O tempo seco, a aridez do Planalto, os descampados refletem as relações distantes, às quais falta profundidade. Martim busca encontrar referências, mas o pai se distancia em favor de uma carreira como prestador de serviço de Estado, enquanto o paradeiro de Lina é uma incógnita que fica em suspenso até o fim desse primeiro volume da trilogia.
Na solidão da viagem, uma parte da minha vida saía de mim, o coração dividido pela amargura e a esperança (…)
Embora deixe para trás os amigos detidos, o que preocupa Martim não é o cenário político escabroso e nem a sensação de insegurança: aos vinte e poucos anos, o que importa para o personagem é a busca do amor.
Tainara Machado
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