Sempre falamos por aqui que a literatura é uma porta aberta para o mundo. Os livros estão sempre nos fazendo enxergar novos ângulos, fronteiras e personagens. Isso acontece porque também a literatura está em constante mutação, abrindo espaço para vozes que antes não reverberavam mundo afora.
Essa transformação parece ter acontecido, de certa forma, com a literatura africana que ganhou as prateleiras brasileiras nos últimos tempos. Essa é, claro, uma opinião que parte de uma experiência pessoal. Mas se até pouco tempo a produção ficcional sobre o continente era predominantemente masculina e escrita do ponto de vista do colonizador, começamos a ver autoras que falam sobre o conflito entre herança colonial e o conhecimento tradicional de forma aberta, passando por questões como racismo e o lugar da mulher na sociedade de um modo que não víamos até então.
Isso não quer dizer, obviamente, que devemos desmerecer a ficção de nomes como Le Clézio e J. M. Coetzee. Embora tenha nascido em Nice, Le Clézio cresceu em uma família fraturada pela guerra e viveu por alguns anos na Nigéria, quando era bastante jovem. Sobre esse período, escreveu um lindo relato sobre a busca por sua origem, por um pai desaparecido que poderia estar em todos os lugares, por uma identidade que já não encontrava.
Por muito tempo, sonhei que minha mãe era negra. Inventei-me uma história, um passado, para escapar da realidade em meu retorno da África, neste país, nesta cidade onde eu não conhecia ninguém, onde me tornara um estrangeiro.
Nessa busca, contudo, Le Clézio não deixa de ver a África como um único bloco, em que o choque se dá pelas novidades ao qual não está acostumado, dos corpos expostos ao sol aos nomes recheados de consoantes. O Africano tem um quê de exotismo que é justamente o que a nova geração de escritores busca espantar.
A África era mais o corpo que o rosto. Era a violência das sensações, a violência dos apetites, a violência das estações. A primeira lembrança que tenho desse continente é a de meu corpo coberto por uma erupção de bolinhas causadas pelo extremo calor, uma afecção benigna de que os brancos sofrem quando ingressam na zona equatorial, com nomes cômicos como brotoejas ou borbulha.
Já Coetzee, nascido na África do Sul, presta pouca atenção às especificidades intrínsecas do continente. Em livros como Elizabeth Costello e em sua trilogia autobiográfica, ele está mais preocupado com questões filosóficas morais e éticas do que sobre seu entorno. Em alguns momentos, ele chega a fazer comentários irônicos sobre a visão que se tem do romancista africano, ao colocar Costello em embate com com o fictício escritor nigeriano Emmanuel Egudu, que afirma:
A verdade é que para o Ocidente nós, africanos, somos todos exóticos, quando não simplesmente selvagens. É o nosso destino.
Costello rebate com a crítica de que os autores africanos passam o tempo todo buscando explorar o mundo em que vivem e, ao mesmo tempo, espiando sobre os ombros para ver se estão sendo satisfatoriamente claros como intérpretes da África para os estrangeiros que lerão seus livros.
Talvez seja essa a qualidade primordial dessa nova geração de romancistas. Autoras como Buchi Emecheta, Chimamanda Ngozi Adichie, Scholastique Mukasonga, Yaa Gyasi e tantos outros vem mostrando que é possível retratar as diferentes culturas e etnias que compõem o mosaico que é a África sem que a escrita pareça uma nova tentativa de interpretar o continente para olhares estrangeiros.
A violência, a fome e a miséria que costumamos associar à região são temas que perpassam essas obras, mas há também um resgate da tradição, da história oral do continente, que antecede o relato dominado pela visão do mundo dos colonizadores, que é extremamente rico e nos desperta imensa curiosidade..
Um dos exemplos é um dos contos de No Seu Pescoço (já resenhado aqui), de Chimamanda Ngozi Adichie. Em A Historiadora Obstinada, Nwamgba é casada com Obierika, que adoece, por feitiçaria de dois primos invejosos, ela acredita. Para evitar que eles tomassem as terras que seriam de seu filho por direito, ela o manda para uma missão católica, onde ele se distancia de suas crenças, e passa a dar as costas para os costumes de sua mãe. E, assim, os interesses que ela pretendia defender perdem espaço no mundo dominado pelos brancos.
A neta, contudo, manteve uma ligação especial com a avó e, anos depois, na universidade, passou a estudar a história africana, relembrando as origens de sua tribo e os relatos que foram escanteados sob o domínio dos brancos, até que mudasse seu nome de Grace para Amieka. Esses ciclos da vida, sob o olhar de Adichie, compõem um dos mais fortes textos sobre herança e dominação, sobre confrontos culturais e conciliação que eu li recentemente.
Parte dessa nova geração que estamos conhecendo é resultado do empenho de pequenas editoras em ampliar as vozes ouvidas no Brasil. É o caso da Nós, que publicou Mukasonga, ou da TAG Livros, clube de assinatura que tem feito um excelente trabalho em divulgar autores ainda pouco conhecidos no Brasil. Vida longa a essas iniciativas e às novas vozes que andam desembarcando por aqui!
Tainara Machado
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