Em sua famosa palestra para o TedTalks, a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie falou do perigo da história única, da visão comum e unificada da história africana, um legado do colonialismo. Em Meio Sol Amarelo, livro de 2008 reeditado recentemente pela Companhia das Letras, a autora busca justamente dar voz e cores para a Guerra da Biafra, vista quase sempre por uma única lupa: como mais uma das tantas guerras civis que assolaram o continente.
O centro da narrativa é a casa de Odenigbo e Olanna em Nsukka, cidade universitária nigeriana. Odenigbo é um professor bem relacionado no campus, seguro de si, com voz ativa sobre a independência nigeriana, sobre costumes e heranças do colonialismo. Já Olanna é descendente da classe alta do país, filha de um influente empresário, mas que não se reconhece em seu meio familiar. O personagem mais empático, contudo, é Ugwu, que chega ainda muito novo para trabalhar na casa de Odenigbo, saído de um pequeno vilarejo no qual cada pedaço de peixe era disputado pela família. Seu assombro sobre os costumes descritos por sua tia nos cativa logo na primeira página:
Ugwu não acreditava que houvesse alguém, nem mesmo esse patrão com quem iria viver, que comesse carne todo dia.
Com sua linguagem simples, Adichie expõem os nítidos contrastes na Nigéria dos anos 60, pós-independência. A herança do colonialismo é um Estado corrupto, em que as relações de poder e as grandes obras são movidas a propinas, com uma classe intelectual que vive apartada da realidade do campo, ensimesmada em suas próprias ideias (qualquer semelhança com o Brasil não é mera coincidência).
Nesta Nigéria erguida sobre a desigualdade social, se forma também uma panela de pressão étnica. Com a divisão do continente pelas potências europeias, o país encampou povos de culturas e tradições distintas: hauças, igbos, iorubas.. Essa tensão explodiria com com o sonho de independência da Biafra, a terra do meio sol amarelo.
No livro de Adichie, contudo, o panorama político é apenas pincelado nas falas dos personagens. É sobretudo o drama humano que importa. Vislumbramos, na primeira parte, uma família feliz, vivendo confortavelmente, convivendo com dramas mundanos como a má vontade da sogra com Olanna. A abundância da casa de Odenigbo, contudo, com suas noites regadas a bebidas e comidas, seria lentamente substituída pelas necessidades da guerra, que se aproxima lentamente, mas engolfa todos os personagens.
A segunda parte se situa no auge da guerra civil, que levou milhares de civis a se deslocarem para o sul do país, enquanto outros milhares foram massacrados. É o relato pessoal dessa tragédia, ignorada pelo ocidente, como sugere o relato de Richard, escritor inglês que se envolve com a irmã de Olanna, Kainene, que Chimamanda Ngozi Adichie busca resgatar.
A vida pregressa, as mágoas e dores do passado, acabam em segundo plano diante das atrocidades cometidas pelos dois lados do confronto. Baseado em fatos reais, Adichie não procura distribuir culpas, e sim faz uma expiação coletiva neste livro. Na guerra, sob o peso da fome e do terror, manter valores é o grande ato de heroísmo.
Essa foi a segunda vez que li Meio Sol Amarelo. A primeira foi quando Chimamanda Ngozi Adichie visitou o Brasil, em 2008, durante a Festa Literária Internacional de Paraty. Reler um livro é sempre uma experiência diferente, ainda mais com o espaçamento de uma década entre as leituras.
De lá para cá, devorei o que pude escrito pela Chimamanda Ngozi Adichie, que se tornou uma de minhas autoras preferidas e sem dúvidas uma das mulheres que mais admiro na atualidade (quer saber por quê? Contei aqui nesta lista). De Hibisco Roxo a Americanah, percebemos grande amadurecimento na construção de seus romances. A linguagem vívida e os personagens cativantes, sempre uma marca registrada de sua escrita, continuam ali, mas a narrativa parece mais límpida, mais confiante, a cada lançamento. Só podemos desejar que logo venham outros livros.
Tainara Machado
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22 de novembro de 2017 at 22:28
“Na guerra, sob o peso da fome e do terror, manter valores é o grande ato de heroísmo.” Exatamente, Tatá!! Estou lendo O Fim do Homem Soviético agora e sinto isso a cada relato. Na guerra, o primeiro sacrifício é a moral – quem a mantém é o verdadeiro herói, que, pela violência ou pelo esquecimento, acaba silenciado.
Em um sua introdução do livro, Svetlana diz: “Barricadas são um lugar perigoso para um artista. Uma armadilha. Lá, a visão fica estragada, as pupilas se fecham,, o mundo perde as cores. Lá, o mundo torna-se preto e branco. De lá, já não se distingue um ser humano, você só vê um ponto preto: um alvo”. Ela, com relatos reais, Chimamanda, com ficção, conseguem trazer luz sobre tempos de trevas. Sorte a nossa (e da humanidade) ter a voz delas ecoando através da literatura.