Ler Rebecca Solnit é ter a sensação de que o emaranhado de percepções que você tem sobre o mundo de repente se organiza em uma narrativa clara, que dá vontade de sair contando para todo mundo, tamanha a urgência das suas reflexões. A Mãe de Todas as Perguntas, livro recém-lançado pela Companhia das Letras, reúne ensaios da escritora e historiadora norte-americana sobre os novos feminismos, resgatando as premissas desse movimento e identificando, de maneira objetiva, as forças que tentam neutralizá-lo.
Um dos temas que perpassa quase toda a coletânea é o silêncio. A partir de exemplos passados e atuais, Solnit mostra como a história das mulheres é marcada pelo não dito. Privar-nos dos lugares de fala é, há séculos, a principal estratégia do patriarcado para forjar a legitimidade do seu discurso:
O silêncio é o que permite que as pessoas sofram sem remédio, o que permite que as mentiras e hipocrisias cresçam e floresçam, que os crimes passem impunes. Se nossas vozes são aspectos essenciais da nossa humanidade, ser privado de voz é ser desumanizado ou excluído da sua humanidade. E a história do silêncio é central na história das mulheres.
A cultura do estupro – termo que Solnit não aprecia muito porque reduz “o foco apenas para a ação individual” – é um assunto frequente nessa análise sobre o silêncio. Calar as mulheres que sofreram violência, transferindo o fardo e a vergonha que deveria ser do agressor para vítima, colocando em dúvida o discurso da mulher ou ainda tratando como casos isolados o que na verdade é uma epidemia, é o combustível dessa forma abominável de misoginia.
O silenciamento é também a negação da empatia, outro conceito bastante explorado por Solnit. O feminismo é a luta de uma minoria – não numérica, mas de representatividade – contra as privações impostas por uma classe dominante. A necessidade de sair da bolha de privilégios e enfrentar o incômodo para enxergar o outro está na base das reflexões propostas por Solnit. Essa é uma postura que se aplica não apenas às questões de gênero, mas também de raça, de classes sociais e onde houver um grupo oprimido e silenciado:
A tarefa de chamar as coisas pelos seus verdadeiros nomes, de contar a verdade da melhor forma possível, de saber como chegamos aqui, de ouvir especialmente os que foram silenciados no passado, de ver como as inúmeras histórias se encaixam e se separam, de usar qualquer privilégio que possamos ter recebido para acabar com os privilégios ou para ampliar seu escopo, tudo isso é tarefa nossa. É assim que construímos o mundo.
A primeira parte desse trecho – “chamar as coisas pelos seus verdadeiros nomes” – leva a outro objeto de estudo importante na obra de Solnit: a linguagem. Cada reflexão da autora revela como as palavras têm o poder de moldar uma realidade.
Seu texto nos estimula a consumir de maneira mais crítica as narrativas que nos cercam, seja na imprensa, na arte, na literatura ou no cinema. O movimento feminista é também um despertar para as armadilhas da linguagem. Mais do que vencer o silêncio, ele propõe que os lugares de fala sejam ocupados pelas mulheres com propriedade e precisão:
A mais legítima e excelsa finalidade da linguagem é dar clareza às coisas e nos ajudar a enxergar; quando se usam as palavras para o contrário disso, já sabemos que tem alguma encrenca e talvez seja um acobertamento.
A obra de Solnit, sem dúvida, é de grande ajuda nessa tarefa de destrinchar a linguagem e esclarecer os fatos. Quando a Tatá resenhou por aqui Os Homens Explicam Tudo pra Mim, corri à livraria para conseguir um exemplar de A Mãe de Todas as Perguntas.
Além de uma argumentação sólida e uma retórica admirável, encontrei um texto claro e bem humorado. Embora não nos deixe esquecer o quanto ainda falta para percorrer, Solnit sempre enaltece o importante caminho que o feminismo já trilhou. Ela diz que “o silêncio e a vergonha são contagiosos; a coragem e a fala, também”. A voz de Solnit tem, felizmente, “contagiado” milhares de leitores mundo afora. Espero que esta resenha contribua para que ela se espalhe ainda mais.
Mariane Domingos
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