A visita da rainha da Bélgica ao liceu foi a história central do último capítulo lido. A partir dessa anedota, Scholastique Mukasonga trabalha um tema universal e complexo – o perigo quando uma imagem se distancia demais da realidade que pretende representar. Para a próxima semana, avançamos mais um capítulo, até a página 231.
Por Mariane Domingos e Tainara Machado
O retrato do presidente vigiando todas as casas ruandesas. As fotos dos astros ocidentais, capas de revista da época, fixadas nas paredes do dormitório das adolescentes. Os esforços para a perfeição durante a visita real. A rainha vestida de branco, sem uma manchinha sequer. O que esses trechos do último capítulo lido têm em comum? Todos eles acabam na discussão acerca do poder da imagem para construção da autoridade e para desconstrução de uma realidade.
Para o chefe de um Estado recém formado, ter o seu retrato nas casas dos cidadãos é uma forma de legitimação, ainda que muitos deles nem desconfiem do porquê desse ato. A imagem, embora não fale, está ali, marcando território e representando o poder e a lealdade.
Esse jogo fica claro na anedota que inicia o capítulo. Quando as garotas são liberadas para decorar o dormitório, elas primeiro recorrem a lembranças de família, artesanatos e motivos religiosos. Mas nada disso as satisfaz. Então elas partem para as revistas da moda, para recortar as fotos das celebridades ocidentais, tão pouco representativas da realidade ruandesa, mas ainda assim atraentes, pois estão impregnadas de anos de dominação cultural:
Porém, elas não estavam satisfeitas com o resultado: não era assim que uma jovem moderna e “civilizada”, como diziam no tempo da colonização, deveria decorar o quarto. Na verdade, elas precisavam, e sabiam disso, de fotos de jovens com cabelos longos, cantores com óculos de sol, como diziam, e moças louras, louras de verdade, mais louras que a sra. Decker, moças de maiô com cabelos longos e louros na praia, tal como elas tinham visto nos filmes do Centro Cultural Francês.
Se pensarmos nos dias de hoje e nas constantes discussões sobre padrões de beleza impostos por imagens na publicidade ou imprensa, não avançamos tanto assim. A realidade ainda é preterida diante da falsa perfeição ou da aceitação. Quando o liceu recebe a notícia da visita da rainha Fabíola, começa uma corrida contra o tempo para inventar uma Ruanda que, pelo que vimos no cotidiano relatado em todos os outros capítulos, nunca existiu:
Devemos preparar a ela uma recepção que lhe mostre a imagem de Ruanda tal como é no presente: uma Ruanda pacífica e cristã.
Mas não podemos culpar apenas os ruandeses por essa obsessão em esconder uma realidade. Ao descrever o comportamento do entourage da rainha (o assessor cronometrando o tempo) e as vestimentas da monarca (o branco impecável tão inadequado para a rusticidade das montanhas), Mukasonga deixa nas entrelinhas que também os belgas, às custas de muito ensaio e encenação, construíam uma imagem de superioridade e poder. Protocolos reais, afinal, não são mais do que isso: uma tentativa de posicionar a nobreza acima da realidade plebeia.
É claro ainda o poder de dominação que o o governo belga ainda exercia sobre a ex-colônia, ainda que o discurso oficial do partido mantivesse que a ascesão ao poder dos hutus significava a vitória de uma maioria democrática no país, em detrimento dos valores monarcas dos tutsis. Neste capítulo, é a história de Godelive que exemplifica essa relação.
Desde o começo do capítulo, Godelive mostra que tem um segredo relacionado à visita da rainha da Bélgica à Ruanda. A história que ela conta quando decide revelar o mistério e dizer que está deixando o país mostra o choque de valores comum nessa relação de poder. Godelive iria para a Bélgica como dama de companhia da filha do presidente, que seria dada de presente ao casal real, impossibilitado de ter filhos.
É curioso como Scholastique retrata a impotência do rei. Entre as meninas, circula a história de que ele teria sido envenenado por um feiticeiro, o que é recebido com completa normalidade pelas alunas do liceu.
Toda a turma aprovou a história de Immaculée. Goretti resumiu a opinião de todas:
Bom, temos que tomar cuidado, pois sempre haverá envenenadores para tornar a gente estéril. Eu conheço alguns. Não se aproximem muito de Fabíola, sem dúvida ela também foi envenenada, e talvez seja contagioso.
O humor leve com que Scholastique retrata o embate cultural que as meninas do liceu vivenciam, entre as regras e crenças da Igreja católica dos brancos e da população local, fazem de Nossa Senhora do Nilo uma leitura sempre fluída. Mesmo quando vemos como o destino das alunas sofria mandos e desmandos nesse embate de poder.
Dessa vez, quem sofre é Godelive, já que o casal real da Bélgica recusa a oferta do presidente de Ruanda, que de bom grado daria sua filha de presente como tentativa de que seus colonizadores continuassem a apoiar seu governo. Godelive, assim, nunca mais teve a coragem de voltar ao liceu, mas acabou conseguindo estudar na Bélgica, em um colégio interno.
Achados & Lidos
Últimos posts por Achados & Lidos (exibir todos)
- #livrariaspelomundo #bookstoresaroundtheworld - 19 de outubro de 2020
- [O Mestre e Margarida] Semana #14 - 14 de setembro de 2018
- [O Mestre e Margarida] Semana #13 - 8 de setembro de 2018
Deixe uma resposta