A literatura tem um papel importante na representação da realidade. Se a ficção já cumpre bem esse papel ao trazer tramas e personagens que refletem os dilemas do indivíduo e da sociedade, a não ficção consegue conectar o leitor com seu entorno de maneira ainda mais direta. Como nessa categoria cabem inúmeros gêneros literários e temáticas, a lista de hoje é bastante diversa – de memórias a livro-reportagens, de tragédias a arte.
1. A Sangue Frio, de Truman Capote: nesse clássico contemporâneo, o escritor americano inaugurou um novo estilo literário – o romance de não ficção. Obra polêmica justamente por se estruturar sobre a linha tênue da realidade e da ficção, não há dúvida que Capote chacoalhou tanto os conceitos de literatura quanto de jornalismo.
Ele passou seis anos apurando o brutal assassinato da família Clutter, ocorrido em 1959 em uma pequena cidade no Kansas, Estados Unidos. Sem gravador ou bloco de notas, contando apenas com sua memória, Capote conversou com vizinhos da vítima, investigou as circunstâncias do crime e, principalmente, entrevistou os dois assassinos. Em anos de apuração, o autor acabou estabelecendo uma estranha relação de amizade e confiança com os criminosos – fato que, por diversas vezes, colocou em xeque a veracidade de sua narrativa.
A obra-prima de Capote não alcançou o sucesso apenas por essa polêmica. A linguagem irônica, os densos perfis psicológicos dos envolvidos e o exame exaustivo, ora neutro ora apaixonado, da realidade deram origem a um retrato cortante da violência nos Estados Unidos e do lado sombrio do sonho americano:
De que tinham medo? “Pode acontecer de novo.” Com algumas variações, era essa a resposta costumeira. No entanto, uma professora observou: “As pessoas não estariam tão alteradas se isso tivesse acontecido com outros que não os Clutter. Com uma família menos admirada. Menos próspera, menos segura. Mas eles representavam tudo o que as pessoas daqui valorizam e respeitam, e o fato de uma coisa dessas ter acontecido com eles – é o mesmo que alguém dizer que Deus não existe. Dá a impressão de que a vida não tem sentido. Acho que as pessoas não estão apenas assustadas; estão é profundamente deprimidas”.
2. Pelas Paredes – Memórias de Marina Abramović: prato cheio para quem gosta de arte ou para quem aprecia histórias de personalidades fortes, esse livro de memórias, recém-lançado pela José Olympio, traz a trajetória da rainha da arte performática, que começou sua carreira nos anos 70.
Nascida na Ioguslávia e filha de pais comunistas, foi criada sob uma cultura implacável e esteve sob o controle abusivo da mãe mesmo quando seu trabalho já começava a ganhar o mundo – obedecia, por exemplo, ao toque de recolher das 22h.
As amarras de uma educação rígida não impediram que a condição humana excepcional de Abramović – uma verdadeira força da natureza – se manifestasse em seu desejo incontrolável de se conectar às pessoas por meio de uma arte inovadora e punitiva.
Adoro viver nos espaços intermediários, nos lugares onde foram deixados para trás os confortos da sua casa e dos seus hábitos, onde você se abre totalmente para o acaso.
É por isso que amo a história de Cristóvão Colombo (…). Imagino Colombo sentado à mesa com os condenados, todos eles com a sensação de que essa talvez fosse sua última ceia juntos.
A meu ver, isso deve ter exigido mais coragem do que viajar até a Lua. Você acha que talvez possa cair da borda da Terra, e então descobre um novo continente.
Mas a verdade é que sempre há a possibilidade de realmente se cair da borda da Terra.
3. O Reino e o Poder, de Gay Talese: se o tema e o formato desse livro-reportagem o tornam leitura obrigatória para estudantes de Jornalismo, a excelência narrativa do americano Gay Talese, que transforma a redação do New York Times em um verdadeiro personagem, faz de O Reino e Poder leitura obrigatória para todos os amantes da boa literatura.
A clássica reportagem que revelou a intimidade do jornal mais importante do mundo é um expoente do Jornalismo Literário (ou New Journalism), movimento iniciado na imprensa norte-americana que se destacou por emprestar o estilo literário à narrativa jornalística, sem comprometer os fatos.
Em O Reino e Poder, Talese fez do Times da década de 60 a pauta para uma das reportagens mais completas da história do jornalismo. Exímio observador e incansável pesquisador e entrevistador, o jornalista constrói uma narrativa clara, ao mesmo tempo fluida e detalhista, de onde brota uma redação viva, habitada por jogos de poder entre indivíduos tão talentosos quanto ambiciosos, cientes e vaidosos de trabalhar em uma instituição da vida americana e no jornal mais influente do mundo.
Uma notícia não publicada não causa impacto. Poderia muito bem não ter acontecido. Assim, o jornalista é um aliado importante da ambição, é o acendedor de lampiões das estrelas. É convidado para festas, cortejado e cumprimentado, tem acesso a telefones que não constam da lista e a muitos estilos de vida. (…) Às vezes, o jornalista pode supor erroneamente que é seu charme, e não sua utilidade, que lhe rende esses privilégios; mas, em sua maioria, são homens realistas que não se deixam enganar pelo jogo. Eles o usam tanto quanto são usados. Ainda assim, são seres inquietos.
4. O Santo Sujo – A Vida de Jayme Ovalle, de Humberto Werneck: mais uma leitura obrigatória dos meus tempos de faculdade, confesso que esse livro-reportagem não foi amor à primeira vista. No entanto, a riqueza do trabalho de pesquisa de Werneck me fez, aos poucos, mergulhar na vida do compositor paraense Jayme Ovalle (1894-1955). Terminei a leitura sentindo-me a melhor amiga desse personagem do modernismo brasileiro!
Uma narrativa completa para entender sua obra musical, impregnada dos cantos amazônicos e do candomblé e que tem, no clássico “Azulão”, com letra de Manuel Bandeira, uma joia gravada até hoje por intérpretes de todo o mundo. Além da contribuição relevante, ainda que pouco conhecida, para a música brasileira, essa biografia recupera também a boemia na Lapa, o trabalho como servidor público e a vida familiar e amorosa de Ovalle:
Em seu amor de mão única, Ovalle compôs outra canção, “Nininha” – e não arquivou a paixão nem mesmo quando, em 1931, Maria do Carmo se casou com o advogado José Thomaz Nabuco de Araújo, o caçula de Joaquim Nabuco. Teve seis filhos. Conta-se que Ovalle saudou com um poema o nascimento do primeiro deles. Repetiu a dose na chegada do segundo. Mas quando veio o terceiro, entregou os pontos e depôs a lira:
– Nenhuma musa é tão prolífica – sentenciou.
5. Vozes de Tchernóbil, de Svetlana Aleksiévitch: a originalidade de forma e conteúdo da obra da autora bielorrussa lhe rendeu, merecidamente, o Nobel de Literatura em 2015.
Em Vozes de Tchernóbil, o cenário é o desastre nuclear, ocorrido em 1986, que devastou a região e mantém, ainda hoje, suas consequências nefastas. A partir de uma narrativa polifônica, Aleksiévitch conta a história que não faz parte da História. É a não ficção que os jornais e os livros didáticos rejeitaram e que se tornou ouro em pó na prosa da bielorrussa.
Impossível passar por essa leitura sem ser impactado, seja pela dureza do relato de quem viveu a tragédia, seja pelo texto cortante de Aleksiévitch, que tão bem captou tudo que lhe foi contado:
O meu marido começou a mudar; cada dia eu via nele uma pessoa diferente… As queimaduras saíam para fora… Na boca, na língua, nas maçãs do rosto; de início eram pequenas chagas, depois iam crescendo. As mucosas caíam em camadas, como películas brancas. A cor do rosto, a cor do corpo… Azulada… Avermelhada… Cinza-escuro… E, no entanto, tudo nele era tão meu, tão querido! É impossível contar! Impossível escrever! E mesmo sobreviver…
E você, gosta de não ficção? Quais são seus títulos preferidos? Deixe aqui nos comentários!
Mariane Domingos
Últimos posts por Mariane Domingos (exibir todos)
- [Resenha / Review] A Vida Pela Frente / The Life Before Us - 14 de março de 2021
- [Resenha / Review] The Vanishing Half - 15 de fevereiro de 2021
- [Resenha / Review] Garota, Mulher, Outras / Girl, Woman, Other - 4 de janeiro de 2021
Deixe uma resposta