À Scholastique Mukasonga não foi dada a chance de cumprir o desejo da mãe, que era ter o corpo coberto depois de sua morte. Os assassinos não deixaram sequer um corpo, apenas os membros soltos e espalhados de Stefania, A Mulher de Pés Descalços (a edição brasileira saiu recentemente pela Editora Nós).
Nascida em Ruanda, Mukasonga viveu a luta fratricida entre os tutsis, sua etnia, e os hutus. Diferente do restante de sua família, a escritora conseguiu o exílio, primeiro para o Burundi, depois para França. Stefania, sua mãe, foi uma entre tantas vítimas do genocídio que devastou o país em 1994.
Este livro é a homenagem de Mukasonga à mãe. Mas não é só isso. É também um tributo às mulheres e à cultura ruandesas. É ainda uma forma de resistência à tirania que cala os mortos, reduzindo vítimas a números, e aniquila os vivos, transformando suas memórias em traumas, em tabus. Mukasonga venceu o horror das lembranças e criou, com sua literatura, um relato único de sua etnia.
Cada capítulo do livro dá conta de um aspecto da vida das famílias tutsis. A busca incansável da mãe por criar esconderijos para salvar as crianças, a colheita do sorgo, a construção das casas, as lendas, os casamentos, a farmácia, os rituais de beleza, a alimentação – tudo isso tem espaço na narrativa de Mukasonga.
Nesse conjunto, três aspectos se sobressaem. Primeiro, a violência do exílio. As privações a que os deportados foram submetidos, em uma região inóspita, dizimava-os não só fisicamente, mas também culturalmente:
Talvez as autoridades hutus, estabelecidas pelos belgas e pela Igreja à frente da Ruanda recentemente independente, esperavam que os tutsi de Nyamata fossem pouco a pouco dizimados pela doença do sono e pela fome. A região onde escolheram instalá-los, o Bugesera, parecia em todo caso inóspita o bastante para tornar ainda mais incerta a sobrevivência dos “exilados do interior”. Eles sobreviveram, no entanto, por toda parte. Sua coragem, sua solidariedade lhes permitiram enfrentar a vegetação hostil, cultivar um primeiro pedaço de terra que, embora não os poupasse da escassez, ao menos bastava para não morrer de fome. E pouco a pouco, os casos de sorte dos deportados transformaram-se em vilas – Gitwe, Gitagata, Cyohoha – onde eles se esforçavam por reproduzir uma farsa cotidiana que quase não conseguia aliviar a dor latejante do exílio.
O segundo ponto que se destaca nessa narrativa é o papel dos colonizadores na aniquilação de um povo. A partir de diversos episódios aparentemente banais, Mukasonga deixa claro o poder devastador da colonização. A necessidade do batismo para ter acesso à educação e ao desenvolvimento, a utilização das crianças como catequizadores involuntários dos pais e a imposição do uso de certas vestimentas são só alguns itens de uma lista imensa que comprova as diversas formas sob as quais a violência pode se manifestar:
Os brancos pretendiam saber melhor do que nós quem nós éramos e de onde vínhamos. Eles nos apalparam, nos pesaram, nos mediram. As conclusões a que chegaram foram categóricas: nossos crânios eram caucasianos, nossos perfis, semíticos, nossa estatura, nilótica. Eles conheciam até mesmo nosso ancestral, estava na Bíblia e se chamava Cã.
O terceiro aspecto de destaque nas memórias de Mukasonga é a força da mulher ruandesa. Stefania, sua mãe, é a representante de tantas outras “mulheres de pés descalços” que carregavam nas cicatrizes dos dedos e calcanhares toda a aridez, não só do solo, mas da crueldade do exílio. Enxada à mão e filhos nas costas, elas eram responsáveis por gerar, nutrir e proteger a família. As mulheres representavam a vida. Não à toa, foram as vítimas mais visadas pelos perpetradores do genocídio.
Stefania, Marie-Thérèse, Gaudenciana, Theodosia, Anasthasia, Speciosa, Leoncia, Pétronille, Priscilla e muitas outras, eram elas, as Mães generosas, as Mães bondosas, aquelas que alimentavam, que protegiam, que aconselhavam, que consolavam, as guardiãs da vida, aquelas que os assassinos mataram como que para erradicar a própria origem da vida.
A Mulher dos Pés Descalços deixa o leitor com um nó na garganta do início ao fim. A delicadeza da narrativa, mesmo diante da brutalidade do tema, é tocante. Dá para sentir a entrega de Mukasonga à literatura. Ela tinha uma missão a ser cumprida a despeito da dor e da agonia que certas memórias lhe traziam. Em entrevista ao jornal O Globo, Mukasonga disse:
— A literatura me salvou. Se eu não pudesse escrever teria enlouquecido. Eu sabia que minha família não estava bem, mas era incapaz de imaginar algo daquela magnitude — conta a escritora. — Ali também entendi que não podia ser a filha ingrata, não podia falhar. Tinha a missão da memória.
Quando Stefania pedia aos filhos que cobrissem seu corpo morto, ela dizia que era porque ninguém deveria ver o cadáver de uma mãe. O véu de palavras, tecido por Mukasonga, acabou por cumprir esse desejo. Em A Mulher dos Pés Descalços, não vemos um corpo morto. Nessas páginas, Stefania está mais viva do que nunca. Uma vida póstuma que o genocídio tentou lhe tirar, mas que a literatura de sua filha lhe devolveu.
Mariane Domingos
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