Na semana passada, fomos convidadas pela Companhia das Letras para assistir à pré-estreia de O Círculo, filme baseado no romance de David Eggers, recém-lançado no Brasil (o texto contém algumas informações sobre a sinopse do filme, para quem não gosta de spoilers!)

O filme começa com Mae, interpretada por Emma Watson, voltando do trabalho em um carro bem velho, que quebra no meio da estrada e a obriga a chamar um amigo para ajudá-la. Ao poucos, vamos nos ambientado em sua vida: um dia a dia tedioso em um trabalho mal pago, que mal lhe permite dar suporte financeiro para sua família. Para complicar mais a situação, a saúde do pai vai se deteriorando e, claro, o convênio não cobre os custos do tratamento. A vida simples da personagem é visível de seu vestuário até seu carro caindo aos pedaços.

As coisas começam a mudar quando sua amiga Annie lhe consegue uma entrevista em uma empresa chamada Círculo, situada em um “campus” semelhante ao do Google ou Facebook. Aceita na empresa depois de uma entrevista um tanto atípica (e superficial), Mae passa a mergulhar no mundo das empresas de tecnologia.

Suas roupas mudam, ela é obrigada a interagir e postar fatos da sua vida pessoal em seus perfis online, suas telas de trabalho se multiplicam e o contato próximo com os pais é logo substituído por conversas rápidas por vídeo. A personagem mal se dá conta de que desde que entrou para o Círculo nunca mais ficou sozinha até uma briga com seu amigo de infância, justamente por causa da exposição a que ela o submete ao postar seu trabalho na rede social.

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Cartaz do filme O Círculo, com Emma Watson e Tom Hanks

Ao sair para remar sozinha à noite, a personagem sofre um acidente e só é salva por causa da nova tecnologia da empresa, mini câmeras portáteis que podem se camuflar em qualquer lugar, apresentadas logo no começo do filme pelo dono da companhia, interpretado por Tom Hanks.

A partir daí, a personagem mergulha nas entranhas da empresa, ao decidir se tornar “transparente”, com uma câmera ligada transmitindo sua vida o tempo todo. As consequências, claro, são desastrosas, mas não vou estragar a surpresa com o restante do enredo. O importante para esse texto é a mensagem passada pelo filme: quanto temos abdicado da nossa privacidade sem que as empresas do setor digam como estão usando e vendendo essas informações, e com que propósito?

Na literatura, a perda da privacidade foi retratada por muitos escritores, mas é difícil não buscar o exemplo de 1984, de George Orwell, quando falamos do assunto. Orwell, que via com desgosto todos os tipos de absolutismo, descreveu um Estado totalitário no qual o Grande Irmão detinha conhecimento de todos os acontecimentos íntimos na vida de seus cidadãos, ao monitorá-los por vídeo.

Orwell só não imaginava que, um dia, estaríamos dispostos a compartilhar muitas informações até então privadas com grandes corporações em troca de maior “engajamento”.

Um vídeo que circula na internet sobre segurança online faz uma provocação interessante nesse sentido: em uma tenda, um homem faz adivinhações sobre a pessoa a sua frente, como o status do relacionamento, a frase naquela tatuagem escondida e até sua renda anual. Ao fim, ele revela que aquelas informações não estavam em uma bola de cristal, e sim na rede.

Fora das telas, o debate sobre o limite da atuação das grandes companhias de tecnologia sem nenhum cerceamento ou competição começa a acontecer. Em um texto publicado originalmente no jornal The New York Times, o estudioso Jonathan Taplin questionou o controle da informação hoje nas mãos das gigantes do setor de tecnologia:

Teremos de decidir, em breve, se Google, Facebook e Amazon são a espécie de monopólio natural que precisa ser regulamentado ou se permitiremos que as coisas fiquem como estão, fingindo que eles não causam danos à nossa privacidade e à democracia.

Se no filme em determinado momento é cogitada a possibilidade de obrigar todos os cidadãos americanos a votarem por meio do aplicativo do Círculo, é inegável o peso que as redes sociais têm hoje nos pleitos realizados nas maiores democracias do mundo. O Facebook ampliou a disseminação de informações mentirosas, em mensagens que são replicadas indiscriminadamente na rede social.

As grandes comunidades de conteúdo político falso no Brasil, por exemplo, são remuneradas por terem muitos seguidores, compartilhamentos e engajamento. Muitas vezes, os prestadores desses serviços estão a milhares de quilômetros dos acontecimentos. Nas eleições americanas, muitas das notícias falsas sobre Hillary Clinton eram disparadas de países do leste europeu, base de grupos que distribuem essas notícias a esmo, por causa da remuneração.

Embora Mark Zuckerberg, o fundador do Facebook, tenha descartado que notícias falsas tenham tido qualquer peso no resultado das eleições americanas, no fim do ano passado o Facebook anunciou que estava desenvolvendo ferramentas para evitar a propagação das fake news.

Ao propor uma utopia, no qual o aumento da capacidade de processamento de dados e informações é capaz de criar uma realidade consideravelmente melhor, com progressos nas áreas da saúde, da ciência e da segurança, por exemplo, O Círculo acaba por criar uma situação distópica, no qual a redução do espaço íntimo, privado, leva a absurdos como a sugestão de que uma empresa pode ser a responsável pela organização civil da sociedade, uma atribuição do Estado.

Ainda que o filme tenha falhas de roteiro, abuse de clichês e não tenha execução perfeita, as ideias e principalmente o debate contido ali é bastante relevante e justifica a visita ao cinema: da crítica à uma cultura em que as empresas tomam cada vez mais para si a vida social de seus funcionários ao poder totalitário das redes (quantos logins seus você emprestou ao Facebook e ao Google para não ter que decorar mais uma senha?), é bastante improvável que você não se identifique e questione seus hábitos em pelo menos algum dos momentos de O Círculo. O filme, na verdade, só aguçou a curiosidade pelo livro, que, por poder se aprofundar mais nessas questões, tem espaço para desenvolver melhor esses questionamentos.

Tainara Machado

Tainara Machado

Acredita que a paz interior só pode ser alcançada depois do café da manhã, é refém de livros de capa bonita e não pode ter nas mãos cardápios traduzidos. Formou-se em jornalismo na ECA-USP.
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