Um dos problemas de se apaixonar por um escritor é ter que encarar que sua obra é finita. O sentimento de orfandade quando acreditamos que já desbravamos tudo o que havia para conhecer dos nossos autores favoritos é difícil de explicar, mas aposto que muitos vão se solidarizar com a minha história.
Há anos, me sentia órfã de Gabriel García Márquez. Depois dos clássicos, como Cem Anos de Solidão e O Amor nos Tempos do Cólera, passei por muitos livros tentando encontrar a genialidade da escrita que nos faz abrir um sorriso no meio de uma frase e que, de tão marcante, deu origem a um movimento literário próprio, o realismo fantástico.
De livros muito especiais, como o primeiro volume de sua biografia inacabada, Viver para Contar, ao ótimo Crônica de Uma Morte Anunciada, passando pelo não tão bom Memórias de Minhas Putas Tristes, há muito tempo não encontrava uma obra do colombiano que me deixasse tão empolgada quanto Doze Contos Peregrinos (recomendação da Mari, a quem agradeço muito pela dica).
Logo no prefácio, García Márquez nos informa que aqueles contos partiram de anotações e observações mantidas de forma um tanto aleatória e desorganizada ao longo de uma vida, sem que ele chegasse ao formato ideal. Os contos, prossegue o autor, são diferentes dos romances, que depois do primeiro parágrafo, de definições, passam a ser resultado apenas do prazer de escrever. No caso das histórias curtas, ou elas andam, ou desandam.
E se desanda, a experiência própria e a alheia ensinam que na maioria das vezes é mais saudável começá-lo de novo por outro caminho, ou jogá-lo no lixo.
Entre idas e vindas, García Márquez chegou a ter 64 temas anotados, que terminaram por ser peneirados pelo próprio autor e pelo acaso, esse elemento tão presente em suas histórias, quando um de seus cadernos de anotações desapareceu de sua escrivaninha do trabalho. No fim, restaram doze histórias curtas com um traço comum: se concentram em latino-americanos peregrinos pela Europa, trazendo consigo o colorido de suas terras para paisagens mais áridas.
As situações muitas vezes beiram o extraordinário ao retratarem amores e desejos irredutíveis. O meu preferido é A Santa. Margarito Duarte, um escrivão colombiano, se vê no centro de uma história fantástica ao encontrar o corpo da filha de sete anos, morta de uma febre não identificada, intacto no caixão ao precisar transferi-la de cemitério.
A notícia do “milagre” logo se espalhou pela colina de Tolima e os habitantes do vilarejo se reuniram para enviar Margarito à Roma, em busca da beatificação da linda menina. A luta inglória de Margarito, sempre com sua caixa assemalhada a um saxofone, é repleta de sobressaltos improváveis, entre eles uma crise de soluços do Papa e cinco papados, que lhe impediram acesso ao pedido de santificação. Por causa da sua obstinação, Margarito é assim descrito neste conto:
Conhecíamos tantos seu drama que durante anos pensei que Margarito Duarte era o personagem em busca de autor que nós, romancistas, esperamos durante uma vida inteira, e se nunca deixei que me encontrasse foi porque o final de sua história me parecia inimaginável.
A habilidade de García Márquez para construir personagens complexos e profundamente empáticos não sofre nenhum abalo ao migrar dos romances, sua especialidade, para as histórias curtas.
Em Doze Contos Peregrinos, os enredos se situam no limite entre ficção e realidade, como em Assombrações de Agosto, no qual o autor conta, em primeira pessoa, uma visita ao castelo de um escritor nos arredores de Arezzo, na Itália. Advertido de que o castelo é mal assombrado, o narrador faz pouco das crenças até que acorda assustado em um quarto estranho.
Os pequenos acasos, com o poder de mudar destinos, aparecem em diversas histórias, em contos que parecem prontos para virar roteiro de Almodóvar. Quase impossível não se compadecer e não se desesperar um pouco com “Só vim telefonar”, a história de uma bela mulher com um destino trágico marcado por uma carona no lugar errado, na hora errada.
Ou então Dezessete Ingleses Envenenados, que brinca com a história de Prudencia Linero, uma senhora que ruma à Itália para encontrar com o Papa e encontra um país com o qual não se identifica e do qual tem ganas de fugir imediatamente. Até descobrir que escapou por um triz de morrer envenenada, apenas por causa de seus rígidos padrões morais.
O último conto de Doze Contos Peregrinos foi um dos primeiros a ser escritos por Gabo, e é também a história na qual a marca de Gabriel García Márquez talvez é mais visível. A história de um jovem casal em lua de mel é tão doce quanto melancólica.
Depois de chegarem a Madri e receberem os presentes de casamento preparados pelos pais, os dois saem em viagem para a França, no luxuoso carro que Billy Sánchez ganhou de presente. Enfeitiçado pelo veículo, ele dirige mais de 12 horas quase sem parar, enquanto a jovem esposa, cansada da viagem, dorme ao seu lado e mal percebe que o ferimento deixado pelo espinho de uma rosa não para de sangrar.
Quando chegam à Paris e a jovem é internada, sem permissão de visitas por uma semana, e o marido não consegue lidar com a solidão em uma terra tão distante e fria.
Para Billy Sánchez, a vida inteira não seria suficiente para decifrar os enigmas deste mundo fundado no talento da mesquinharia. Nunca entendeu o mistério da luz da escada, que apagava antes que ele chegasse ao seu andar, nem descobriu a maneira de tornar a acendê-la.
Entre tantas outras pequenas desventuras como essa, Billy, “perdido na tradução” entre dois mundos tão diferentes, perde também o seu grande amor. Nas tragédias da vida cotidiana, mistura-se o destino com certos acontecimentos sobrenaturais que, mesmo quando Gabo se afasta ligeiramente da ficção, continuam presentes em sua prosa.
Tainara Machado
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21 de junho de 2017 at 21:18
Que bom que gostou, Tatá!! Meu conto preferido é O Rastro do Teu Sangue na Neve. Lembro que fiquei extremamente impactada!
10 de abril de 2019 at 22:35
Faz um resumo para mim do conto assombrações de agosto.
Por favor.