[Resenha] Homem no Escuro

Um quarto escuro e um senhor septuagenário que sofre de insônia e tem dificuldades de locomoção. Parece um cenário improvável para uma trama mirabolante – não nas mãos do escritor estadunidense Paul Auster. Homem no Escuro é uma narrativa guiada pela memória e imaginação de August Brill, crítico literário aposentado e viúvo, que já não tem muita expectativa em relação à vida e decide dedicar seu tempo às lembranças e à imaginação.

O escuro, protagonista já no título do livro, é o gatilho da mente do personagem. Quando a noite chega e a casa se aquieta, Brill é invadido pelas recordações. O antídoto que ele encontra para não sofrer pela ausência da companheira de anos é criar personagens, cenas de ação e um mundo paralelo, em que os Estados Unidos enfrentam uma guerra civil parecida com a Guerra de Secessão:

Não quero começar a pensar em Sonia. Ainda é muito cedo, e, se eu me deixar levar agora, vou acabar pensando nela durante horas. Vamos ficar concentrados na história e ver o que acontece se eu a tocar até o fim.

O enredo inventado por Brill lembra algumas distopias clássicas da literatura, mas com bem menos detalhes, já que essa realidade distópica divide espaço na história com uma narrativa de memória, que se apoia nas recordações, nem sempre agradáveis, do personagem central. Não espere desta obra de Auster uma leitura parecida com 1984, por exemplo, porque são propostas e temáticas diferentes.

O mundo paralelo que Brill constrói em sua imaginação é uma válvula de escape de uma realidade miserável. Ele se recupera de um acidente de carro que quase lhe custou a perna. Tem a companhia da filha dedicada, que foi abandonada pelo marido, e da neta em depressão após a perda do companheiro, vítima de guerra.

A guerra é um tema que perpassa toda narrativa, como uma espécie de ponto de ligação das duas tramas que se desenvolvem paralelamente. No passado de Brill, ela está nos relatos da família judia da esposa. No presente, a guerra se impõe tanto no seu mundo real, pela viuvez precoce da neta, quando no seu universo fictício, em que os Estados Unidos sucumbiram a uma nova disputa que ameaça a soberania nacional.

Há também uma abordagem menos óbvia da guerra, quando Brill relembra momentos de ódio que presenciou durante uma onda de violência racial que atingiu o país, em sua juventude. O narrador recorda que, diferente da família da esposa ou do marido da neta, ele nunca esteve em um campo de batalha, pelo menos não o que comumente se entende por “campo de batalha”. Em um trecho bastante marcante, Brill ressalta que a guerra está onde o ódio está, e não necessariamente onde exércitos uniformizados se enfrentam:

Essa foi a minha guerra. Não uma guerra de verdade, talvez, mas, uma vez que a gente testemunha a violência nessa escala, não é difícil imaginar algo pior, e, uma vez que a nossa mente é capaz de fazer isso, a gente entende que as piores possibilidades da imaginação são o país onde a gente vive. É só pensar, e isso tem toda chance de acontecer.

O grande trunfo do livro de Auster é o clímax que ele cria em torno da intersecção desses dois universos: a memória (construída a partir das experiências) e a imaginação. Em uma saída bastante inventiva, os personagens dos dois mundos irão se encontrar e comprovar a ideia que baseia a narrativa:

Não existe uma única realidade, cabo. Existem muitas realidades. Não existe um único mundo. Existem muitos mundos, e todos seguem paralelos uns aos outros, mundos e antimundos, mundos e mundos-sobra, e cada mundo é sonhado ou imaginado ou escrito por alguém num outro mundo. Cada mundo é a criação de uma mente.

A subjetividade da percepção humana da realidade é evidente na narrativa. Nas entrelinhas de Homem no Escuro, Auster também nos diz que, quando a realidade está sombria, fica difícil até mesmo imaginar outras realidades mais promissoras. A guerra é, talvez, a atrocidade humana mais eficaz em aniquilar a imaginação, tamanho o descrédito em que ela joga a raça humana. Tudo o que resta é a “escuridão infinita”, a mesma que “reconforta”, ou melhor, anestesia, Brill todas as noites.

Mariane Domingos

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Eu amo uma boa história. Se estiver em um livro, melhor ainda. / I love a good story. If it has been told in a book, even better.
Mariane Domingos

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2 Comentários

  1. Acabei de ler Homem no Escuro de Paul Auster e foi uma das experiências literárias mais fascinantes da minha vida. É um livro sensível e profundamente tocante, assim como o seu texto resenhando o livro. É o livro perfeito de cabeceira, aquela leitura antes de dormir. Creio que no escuro, somos todos um pouco como Brill. Lembrando do que foi, as vezes tentando fugir do que será e criando mundos e histórias possível.

    • Mariane Domingos

      15 de fevereiro de 2021 at 18:18

      Obrigada pelo comentário, Rafael! Li este livro há um tempo e ver seu comentário me fez lembrar o quanto esse livro é maravilhoso. E concordo totalmente: todos somos um pouco como Brill!

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