[Dicas da Imensidão] Semana #3

A personagem forte e a temática universal são os destaques do segundo conto da coletânea Dicas da Imensidão. Em Bola de Cabelo, Margaret Atwood prende o leitor com uma narrativa que gera, desde o título até o desfecho, curiosidade e reflexão. Para a próxima semana, leremos o conto Ísis na Escuridão, que acaba na página 84. Conte para gente o que você está achando da leitura!

Por Mariane Domingos e Tainara Machado

Com um início, aparentemente desconexo e um tanto grotesco, Margaret Atwood nos apresenta a personagem Kat, uma mulher independente, bem-sucedida profissionalmente, que atravessa uma fase de questionamentos e descobertas acerca de seu próprio corpo e sua personalidade.

A cena que abre a narrativa é a de Kat contemplando um tumor benigno que foi extraído de seu ovário após uma cirurgia. Ela pediu ao médico que conservasse e lhe entregasse o elemento, em uma espécie de ligação afetiva com aquele corpo estranho que havia sido produzido dentro dela.

Kat fez o médico prometer que guardaria a “coisa” para ela, fosse lá o que fosse, de modo que pudesse dar uma olhada. Estava profundamente interessada no próprio corpo, por qualquer coisa que ele pudesse escolher, fazer ou produzir; (…).

Se tivéssemos que definir um tema central do conto Bola de Cabelo, provavelmente apontaríamos a capacidade de criação humana diante dos temas mais variados. E, aqui, usamos “criar” no sentido de “inventar”, “moldar”, chegando mesmo a conferir certa artificialidade a um processo natural.

A obsessão de Kat pelo tumor que lhe foi expurgado é o primeiro sinal dessa temática. Seu corpo criou, produziu aquilo, estabelecendo uma ligação irremediável, que nem a cirurgia foi capaz de superar. Desse cenário mais metafórico passamos para uma expressão mais concreta do tema: a profissão da personagem. Ela é uma stylist, que, mais do que descobrir, define as tendências no mundo da moda – Kat cria aquilo que as pessoas irão desejar.

Suas criações não param por aí. Kat molda a personalidade das pessoas que a rodeiam, por meio da construção da imagem perante o mundo, uma temática também frequente neste conto. Quando se refere ao amante, executivo da revista em que trabalha, ela diz:

Ele tinha sido Gerald logo que se conheceram. Ela o transformara primeiro em Gerry, depois em Ger. (…) Nessa nova fase dele, com esse novo nome, curto, duro, reduzido ao mínimo, que termina na nota cortante do “r”, ele é uma criação de Kat.

No entanto, conforme o texto avança, percebemos que a própria Kat é vítima de suas invenções. Em um dos melhores trechos do conto, Atwood descreve como a autoimagem da personagem foi mudando com o tempo. E essa evolução é medida pela mudança de seu nome, que parte de Katherine para a corruptela Kat. Esse símbolo não foi uma escolha aleatória de Atwood, afinal o nome é a maneira como o indivíduo é identificado. A identidade de Kat estava em transformação.

Essa transformação se dá sobretudo pela imagem, muitas vezes falsa, que Kat é capaz de projetar para si e para o mundo. O jogo de luzes e espelhos da fotografia, que é capaz de “fazer qualquer mulher parecer feia”, também vale para a realidade. É possível elaborar imagens tão bem acabadas do lado externo, mas profundamente desarticuladas na intimidade. É o amadurecimento que leva Kat a questionar o que é invenção e o que é real em sua vida.

Ela olha fixamente para o espelho do banheiro, avalia seu rosto no vidro embaçado. Um rosto dos anos 1980, uma máscara, uma cara radical; empurre os frascos para a parede e agarre tudo o que puder. Mas agora estamos na década de 1990. Será que já está fora de moda, assim tão depressa? Ela só tem 35 anos e já não consegue mais se manter a par do que as pessoas dez anos mais moças estão pensando. Isto poderia ser fatal.

Em um mundo construído com base em estereótipos e imagem, a passagem do tempo é cruel. Mas mais do que esse questionamento, o que Atwood parece querer provocar neste conto é uma reflexão sobre até que ponto nos submetemos a padrões e aceitamos construir uma imagem que, no fim das contas, não reconhecemos no espelho, que ficou datada. No caso de Kat, a construção é da imagem dela e de Gerald, que se tornou, com seu patrocínio, um homem sexy, refinado.

O fim do conto é simbólico. Despedida de seu emprego após o afastamento para fazer a cirurgia, Kat arquiteta uma sutil vingança contra Ger, seu ex-editor e amante. Convidada para um jantar na casa dele e de sua espora, Sheryl, ela decide enviar apenas um presente em homenagem ao casal. Uma enorme caixa de trufas de chocolate de uma marca cara.

Kat então embrulha seu tumor, Bola de Cabelo, em filme plástico, em papel de seda, o salpica de chocolate o envolve em laços, para depois acomodá-lo no centro da caixa. A esposa, reflete, jamais desconfiaria de nada em uma embalagem tão cara. Antes de enviar a caixa, ela “conversa” com o tumor:

É irredutível, tem a textura da realidade, não é uma imagem. O que diz a ela é tudo que ela jamais quis ouvir a respeito de si mesma. Isso é conhecimento novo, misterioso, precioso e necessário. É cortante.

O tumor é sua fúria, a verdade gestada por debaixo dos papéis de seda cor de rosa em que nos escondemos ao construirmos nossa imagem para o mundo. Em um mundo de aparências, a realidade, quando se sobressai, é nua e crua.