Quando o olhar lírico do escritor português Valter Hugo Mãe encontra a cultura milenar do Japão antigo, o resultado não poderia ser outro senão uma literatura que alcança o mais alto patamar de forma e conteúdo. Homens Imprudentemente Poéticos é um livro que premia o leitor com a beleza da linguagem, ao mesmo tempo em que, sem perder o ritmo narrativo, extrai os encantos e a fealdade da essência humana.
A história se passa em uma aldeia no Japão e, assim como em seu outro romance A Desumanização, cuja trama foi concebida após uma temporada na Islândia, para este livro, Hugo Mãe também imergiu na cultura local. Mais do que inspiração para lugares e personagens, o escritor soube refletir no romance a sabedoria japonesa, especialmente em relação à morte, à natureza e à felicidade.
O artesão de leques Itaro é “um cúmplice da natureza, um certo intérprete” que expressa toda beleza da fauna e da flora na meticulosidade de suas pinturas. Paradoxalmente a essa sensibilidade, Itaro é um homem abatido pela miséria, não apenas de dinheiro, mas principalmente de ternura. Ele tem o dom de ver o futuro no instante exato da morte dos animais. Suas visões sempre trazem destinos cruéis e ele vive encurralado entre o ímpeto da curiosidade, e portanto da vontade de matar, e o assombro da descoberta.
O oleiro Saburo, vizinho de Itaro, é o oposto do artesão. Um poço de amor, pelo menos até a morte da esposa Fuyu, atacada por uma fera misteriosa vinda da montanha. A tragédia já havia sido anunciada por Itaro e, a despeito das tentativas de Saburo para proteger a amada, o presságio se concretiza e endurece, aos poucos, a alma do oleiro:
A sua vontade apenas queria cuidar do mundo. Mas dormia apoquentado com a solidão e o crescente tamanho do amor. O amor, na perda, era tentacular. Uma criatura a expandir, gorda, gorda, gorda. Até tudo em volta ser esse amor sem mais correspondência, sem companhia, sem cura. Que humilhante a solidão do amante. O oleiro disse assim: que humilhante o coração que sobra. O amor deixado sozinho é uma condição doente.
Depois da morte de Fuyu, o marido pendura ao vento o quimono vazio da mulher, tal qual um espantalho. Como símbolo da ausência e do amor de Saburo, essa figura paira sobre a história e é decisiva no destino do oleiro, que oscila entre delicadezas poéticas e desejos de vingança.
Da mesma forma, Itaro também tem um personagem que é o seu ponto de equilíbrio. Sua irmã cega, Matsu, representa a força da gratidão diante das misérias humanas. A felicidade como uma condição preponderante, mas pontual, é a premissa da existência da garota. Apesar de não lhe faltarem motivos para cultivar o rancor, sobra nela a gratidão:
… sabia bem que a felicidade se compunha da soma de muita tristeza também. Carregaria essa tristeza no seu pranto respeitoso, espaçadamente. E chorar seria também a sua mais íntima prova de gratidão.
Matsu é a chave de outra ideia que permeia todo romance: a escuridão e sua transcendentalidade são a resposta para o enigma da vida. Não enxergar é ter “extremidades indefinidas”, enquanto se apegar à materialidade da visão é limitar-se à efemeridade dos momentos:
Ver era um modo de ir embora ou de olhar para sempre. (…) Sem tangibilidade, ver humilhava a memória, que nunca recuperaria a completude de coisa alguma. A memória era o resto da realidade. Uma sobra que mutava para a ilusão com facilidade.
Um dos capítulos mais primorosos do romance é quando Itaro se encerra em um poço, na total escuridão, depois de se aconselhar com o sábio da aldeia, que lhe recomenda ficar sete sóis e sete luas no “ventre puro do Japão”, “sem mortes, nem erros”, para expiar seus fantasmas. O aprisionamento lhe obriga a experimentar a mesma cegueira de Matsu e o desfecho não poderia ser mais revelador.
O processo de descoberta de Itaro, em um esforço último para se livrar de suas sombras, coincide com a trajetória de enraivecimento de Saburo. Dois personagens antagônicos que mais se completam do que se opõem e cujo embate iminente dá o clímax à narrativa.
Cada frase que, à primeira vista, parece solta ou gratuitamente poética, tem seu papel na arquitetura de um enredo típico, construído a partir das jornadas heroicas de personagens marcantes.
O leitor iniciante na obra de Hugo Mãe pode encontrar dificuldades nas primeiras páginas até se habituar a essa prosa poética. A persistência não demora a ser recompensada. O estilo do escritor português é único e combina a soberania narrativa ao domínio da linguagem.
Ainda temos o privilégio de lê-lo no original. Valter Hugo Mãe é um escritor que desperta o orgulho lusófono tamanha a beleza e o potencial que a língua portuguesa exibe em suas mãos.
No romance, a menina Matsu é o personagem que encarna essa admiração pela linguagem. Há um trecho em que ela diz:
… os meus brinquedos são as palavras. Persigo o encantamento de que são capazes.
Sem dúvida, um daqueles momentos em que criador e criatura se confundem.
Mariane Domingos
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11 de abril de 2020 at 02:30
Bela resenha, Mariane. Concordo plenamente com você. Inclusive o formato do livro com capítulos de 3 páginas cada um, em média, é um atrativo a mais para a preguiça ledora que nos assola. Tanto que a única exceção passa despercebida; justamente a “cena” do poço que você também destaca. Tem cerca de 20 páginas, mas a gente nem percebe. Valeu.
10 de maio de 2020 at 23:27
Fico feliz que tenha gostado da resenha, Benedito! Bem observada a questão da extensão dos capítulos. Concordo totalmente que essa estrutura dá mais fluidez à leitura. Obrigada pelo comentário!
10 de janeiro de 2021 at 21:43
Achei que ele fosse angolano!