Publicado às vésperas da Segunda Guerra Mundial, O Muro, do escritor e filósofo francês Jean-Paul Sartre, reúne cinco contos – O Quarto, Erostrato, A Intimidade, A Infância de um Chefe e O Muro, que intitula e abre o livro.
Nessas narrativas, a riqueza do pensamento filosófico de Sartre se concretiza em personagens e situações inquietantes que trazem à tona as tensões menos evidentes de um mundo pré-guerra. É a filosofia se aproximando da experiência humana, assim como desejavam os existencialistas, escola da qual Sartre e outros grandes pensadores e autores, como sua companheira Simone de Beauvoir e Albert Camus, faziam parte.
No primeiro conto, O Muro, Sartre relata a última noite de três condenados à morte. A espera exaure cada um deles de maneira diferente. Um se desespera, o outro se apega ao materialismo de seu corpo e Pablo Ibbieta, o narrador, é a pura expressão da indiferença. Para ele, a vida carece de sentido e isso fica especialmente claro diante da iminência da morte. A existência é toda ela uma espera:
No estado em que eu estava, se eles tivessem vindo me anunciar que eu podia voltar tranquilamente para casa, que eles poupariam minha vida, isso não teria me sensibilizado: algumas horas ou alguns anos de espera é tudo igual, quando já perdemos a ilusão de ser eterno.
Esse foi meu conto preferido da coletânea, não apenas pelos diálogos poderosos, mas também pelo final surpreendente que corrobora a noção de que o absurdo é inerente à existência humana.
Se nessa narrativa o muro é a matéria que separa a vida da morte, uma vez que os condenados serão empurrados contra ele quando o pelotão de fuzilamento entrar em ação, no conto O Quarto, o muro distingue dois mundos – o da loucura e o da sanidade.
Ève é casada com Pierre, um homem que padece de distúrbios mentais. Ele já não sai de dentro do quarto, onde vive em um universo particular. Os pais da moça desejam que ela o abandone, mas ela não está disposta a isso. Pelo contrário, Ève quer ficar ao lado do marido, nem que para isso precise imergir na loucura dele:
Ela pensou de repente, com uma espécie de orgulho, que ela já não tinha lugar em parte alguma. “Os normais creem que ainda sou parte deles. Mas eu não conseguiria ficar uma hora entre eles. Eu preciso viver lá, do outro lado desse muro. Mas lá, também não me querem”.
A mãe de Ève também está doente e vive encerrada em um quarto, mas o Sr. Darbédat não trata a esposa como trata o genro. Para ele, sua mulher ainda é digna de atenção, enquanto Pierre deve ser apartado totalmente do convívio social. A intolerância com as doenças mentais e as discussões acerca da aceitação implícita no amor são temas centrais desse conto. Desviar-se da conduta esperada pela sociedade, embora factível, não é tão simples.
Em Erostrato, o personagem principal, Paul Hilbert, é mais um que não se encaixa nos padrões do mundo e resolve manifestar sua inadequação a partir de ideias megalomaníacas e pirotécnicas. Sua inspiração é o incendiário grego Erostrato que “queria se tornar ilustre e não achou nada melhor que colocar fogo no tempo de Éfeso, uma das sete maravilhas do mundo”. O narrador se sente incompreendido porque tem asco pela humanidade e não pode se expressar sem causar repulsa ou repreensões:
Eu sou livre para amar ou não lagosta à americana, mas se eu não amo os homens, eu sou um miserável e não tenho lugar ao sol.
Um aspecto curioso da narrativa é que o gatilho para a execução do atentado é uma pergunta aparentemente banal feita por Paul a um transeunte: “O senhor saberia me dizer onde é a rue de La Gaieté (Rua da Felicidade)?”. A opção de Sartre por incluir esse endereço em tal ponto da narrativa não soa despropositada. Paul Hilbert representa o livre arbítrio levado ao extremo, quando o poder da escolha significa a ameaça à felicidade, tanto do indivíduo, quanto dos que o cercam. A responsabilidade da decisão é, afinal, um fardo mais pesado do que parece.
Essa temática volta a aparecer no quarto conto do livro – A Intimidade – que relata a história de um casamento falido, degradado pela rotina e pela falta de desejo, amor e companheirismo. Lulu decide, ou como ela mesma diz, os fatos decidem por ela, abandonar Henri e fugir para Nice com o amante, mas seus planos são ameaçados pelo apego às convenções e, principalmente, aos hábitos. Mesmo em seu bilhete de despedida, sua rotina de esposa vem antes do adeus:
A lentilha está no fogo. Sirva-se e desligue o gás. Tem presunto na geladeira. Eu me cansei. Adeus.
A todo momento, Lulu tenta se eximir da responsabilidade de suas decisões, caindo em um discurso fatalista – as coisas são como são. É por esse caminho também que vai o personagem principal do quinto conto – A Infância de um Chefe – o mais longo de todos.
Lucien Fleurier é filho de um casal burguês e tem um destino traçado para sua vida – tornar-se, um dia, o patrão da indústria que pertence ao seu pai. No entanto, no caminho, surgem inquietações nada banais: “Eu existo?”, “Para que existo?”, “Quem é realmente Lucien?”. Embora esse seja o conto mais pesado e cheio de referências teóricas da coletânea, ele não desvia a obra de sua proximidade com a realidade humana.
Apesar de o nome Sartre, muitas vezes, intimidar pela grandiosidade de seu trabalho como filósofo, sua literatura ficcional é bastante fluida e clara. Os contos têm ritmo, personagens bem construídos e abertura para que, conhecendo ou não sua obra filosófica, o leitor possa desfrutar de um texto rico, repleto de reflexões.
Mariane Domingos
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