Comecei a ler cedo. Quase não tenho lembranças da época em que as letras não faziam sentido para mim. Entrei na escola aos três anos de idade, mas antes disso já via minhas irmãs trazerem livros e cadernos de caligrafia para casa. Assim começou meu encantamento com as palavras.
Sempre tive afinidade com gramática, redação e literatura, mas não acho que o hábito da leitura tenha resultado apenas de um processo natural. Exemplo e incentivo foram essenciais nesse caminho.
Meus pais nunca foram grandes leitores e nossa casa não tinha paredes cobertas por livros. A escola, portanto, teve um papel decisivo. Recordo-me com clareza das competições que premiavam quem lesse mais páginas por mês. Comecei a montar minha pequena biblioteca dessa forma. Quanto mais lia, mais chances eu tinha de ganhar aquele título cobiçado da Série Vaga-Lume.
Recentemente, a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie lançou o ótimo Para Educar Crianças Feministas, uma livro-manifesto que reproduz a carta da autora a uma amiga, que havia acabado de ser mãe e lhe pedia conselhos para criar a filha como feminista. O livro inteiro traz verdades urgentes e, uma delas, fala sobre a leitura:
Ensine Chizalum a ler. Ensine-lhe o gosto pelos livros. (…) Os livros vão ajudá-la a entender e questionar o mundo, vão ajudá-la a se expressar, vão ajudá-la em tudo o que ela quiser ser – chefs, cientistas, artistas, todo mundo se beneficia das habilidades que a leitura traz. (…) Se nada mais der certo, pague-a para ler. Dê uma recompensa. Sei dessa nigeriana incrível, Angela, uma mãe solo, que estava criando a filha nos Estados Unidos. A menina não gostava de ler, então a mãe decidiu pagar cinco centavos para cada página lida. Mais tarde, ela dizia brincando: “Saiu caro, mas o investimento valeu a pena”.
É preciso deixar de lado a visão romantizada da paixão pela leitura como um hábito que surge naturalmente e que não pode ser doutrinado. Sejamos sinceros: à medida que a tecnologia evolui, cercamo-nos de distrações, a maioria delas bem menos exigentes que a leitura. Não ofereça para uma criança um tablet e um livro e espere que ela espontaneamente escolha o livro sem antes ter sido educada sobre seu valor.
E quando digo valor não me refiro apenas ao sentido abstrato da palavra. Quando comecei a ganhar os livros nas competições da escola, sentia prazer em ter um cantinho para organizar aqueles objetos e exibi-los (ainda hoje aprecio as visitas que param diante das minhas prateleiras). Não à toa, identifiquei-me profundamente com estre trecho do romance De Amor e Trevas, do israelente Amós Oz:
Quando eu tinha uns seis anos de idade, chegou o grande dia para mim: papai esvaziou um cantinho de uma de suas estantes e permitiu que eu transferisse meus livros para lá. Para ser mais preciso, ele me deu uns trinta centímetros, mais ou menos a quarta parte da prateleira mais baixa. Abracei meus livros, que até então viviam deitados sobre o tapete, ao lado da minha cama, e os carreguei até a estante de papai e os arrumei em pé, as costas voltadas para o mundo exterior, e a frente, para a parede.
Aquele foi um ritual de iniciação, o verdadeiro rito de passagem para a idade adulta: o indivíduo cujos livros ficam de pé já é um homem, não mais uma criança.
Impossível negar o poder de atração de uma bela estante de livros – um bom começo para uma relação duradoura com a leitura. Idas a livrarias, bibliotecas ou eventos literários deveriam ser passeios rotineiros para crianças. Habituar os pequenos à presença do livro, em casa ou fora dela, é uma forma de estimular a leitura.
Esperar que eles cresçam e que a bibliografia obrigatória da escola se torne um fardo pode ser um caminho irreversível. A infância é a fase da descoberta e não há melhor parceira nessa jornada do que a literatura. Histórias são terreno fértil para a imaginação e aproveitar essa idade para incutir o gosto pela leitura é a estratégia mais inteligente. Mac Barnett, escritor de livros infantis, disse em um artigo para o The Guardian:
… quando eu era criança, minhas histórias favoritas eram aquelas estranhas e estimulantes e difíceis de desvendar, o que fazia sentido, porque o mundo era geralmente assim também. Crianças são leitores ideais de ficção experimental, porque a infância é experimental, enquanto adolescentes são péssimos leitores desse tipo de ficção, porque eles se iludem pensando que já descobriram tudo (adultos são ainda piores).
Justamente por que as crianças estão desvendando o mundo e formando suas opiniões, a literatura infantil tem um papel decisivo em prepará-las para realidade, sem negligenciar o lúdico e o imaginário. A autora Lilia Moritz Schwarcz, professora titular de Antropologia da USP e uma das criadoras do selo Companhia das Letrinhas, resumiu bem essa questão em sua coluna no Blog das Letrinhas:
Enfim, nunca fui partidária da ideia de que crianças precisam ler histórias que contenham, via de regra, “finais felizes”. Enquanto fui editora da Letrinhas me comprometi, inclusive, com esse tipo de literatura que não devolve apenas o que dela se espera. Nosso mundo anda difícil, e não é preciso fazer da literatura infantil um mundo apartado e isolado das ambiguidades, tensões e desafios que experimentamos.
Não existe manual para educação de filhos, mas se houvesse um sou da opinião de que o estímulo à leitura teria espaço garantido. Pais e mães são protagonistas nessa narrativa, mas nada impede que tios, padrinhos e professores assumam essa função também. Posso até não conquistar o prêmio de “tia mais popular”, mas não pretendo deixar de dar livros de presente para crianças.
Mariane Domingos
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9 de maio de 2017 at 17:15
Excelente texto! Eu fui incentivada pela biblioteca da escola. As paredes eram pintadas com temas de desenhos da Disney, primeira coisa que me atraiu. E quando entrei na biblioteca, as prateleiras eram da minha altura, estavam a meu alcance. E de lá para cá, nunca mais parei!
15 de maio de 2017 at 20:56
Obrigada pelo comentário, Maria! 🙂 Eu também fui fisgada pela biblioteca da minha escola, rs! Ainda bem!