Já falamos aqui de grandes autoras, de feminismo na literatura, de personagens que amamos, mas um assunto que foi tratado só por tabela, de certa forma, é o machismo na literatura.
O que me fez pensar sobre o assunto foi a lista, publicada há duas semanas, com 5 traições famosas na literatura. O que primeiro veio à mente foram os clássicos do gênero: Madame Bovary, Anna Kariênina, O Primo Basílio, Dom Casmurro… Hum, pera aí, é uma lista só com mulheres no papel de traidora!
Pensei, pensei, pensei e não consegui encontrar nenhum exemplo, ao menos na minha estante, de um clássico da literatura em que a traição de um homem não seja algo supérfluo para a história, banal, esperado, até formador de caráter do personagem. Acabei terminando a lista com Hamlet e a A Besta Humana, no qual as traições são parte de um contexto mais amplo de vingança e assassinato. Ainda assim, também nesses casos, as adúlteras são as mulheres.
O adultério, nos romances em questão, era uma das poucas expressões de rebeldia ao alcance das mulheres. A submissão estava tão enraizada nas sociedades essencialmente patriarcais das quais essas narrativas fazem parte que, ao colocar como protagonista uma mulher que rompe esse tabu, esse passa naturalmente a ser o eixo da história.
Há, ainda, o fato de que esses clássicos são todos escritos por homens. Assim, não é muita surpresa que, como colocou nossa leitora de carteirinha Ana Athanásio, em comentário na nossa página do Facebook, ao longo dos anos “a traição masculina tenha ganho esse caráter de virilidade e a feminina foi pintada como algo desprezível”.
Esse ponto de partida talvez seja essencial para o debate que se propõe aqui: os clássicos são machistas porque esses autores não conseguem se distanciar de seus valores, princípios e moral mesmo quando a narrativa é centrada em uma personagem feminina.
Madame Bovary não experimenta os sentimentos variados e contraditórios que aparecem em romances escritos por mulheres e nos quais também há casos extraconjugais, como é o caso de A Fazenda Africana, de Karen Blixen, e da tetralogia napolitana, de Elena Ferrante, para citar apenas dois casos, ainda que esses dois romances já sejam mais contemporâneos.
Ainda que tenha sido um livro transgressor para sua época pela própria ideia de adultério feminino, Emma Bovary é essencialmente frívola e suas decepções partem da vida romanceada que ela criou em sua imaginação a partir da leitura de livros. Nos outros dois casos, os sentimentos são mais reais, nuançados.
A discussão sobre machismo na leitura apareceu também recentemente por causa de uma edição de Vida e Proezas de Aléxis Zorbás, da TAG, o clube de assinaturas de livros que vem arrebatando milhares de leitores (eu entrei para a turma recentemente!).
Muitos leitores questionaram atitudes e a linguagem do personagem, o que levou até a TAG a reiterar que “não compactua com o machismo, e que a mais eficaz maneira de mantermos aceso o espírito critico se da pela franca exposição”.
A escritora Carol Bensimon, que escreve para o blog do clube, o Etcetera, comentou a leitura do mês de janeiro e lembrou o quanto é difícil falar mal de um clássico. Ainda assim, apontou a oposição sem nuances com que o autor trata os grandes assuntos e como o papel feminino é inferiorizado.
Bensimon faz uma ressalva importante. Sua crítica à Zorbás não é fruto de uma leitura moral contemporânea de períodos em que os valores eram bem diferentes dos atuais. Mas, a depender do assunto, é sempre possível que certo tema ressoe apenas como preconceito, e não como um retrato de seu tempo.
E há, por vezes, um limite do que podemos tolerar na vontade por aceitar os valores de outras épocas. Lembro que há uns dez anos a Rocco lançou um caderno dos escritos de Clarice Lispector para revistas femininas, no início dos anos 1940, chamado Correio Feminino. A edição era linda, de cores vivas, entre o rosa e o lilás, capa em relevo, bastante chamativa. Comprei (eu, uma leitora suscetível a capas bonitas desde sempre).
Os textos, porém, tratavam da melhor forma de educar os filhos, preparar o jantar ou estar bela no fim do dia. É certo que todos temos que ganhar a vida, mas aquilo não era Clarice. Troquei o livro. Nunca me arrependi. Em minha memória, só quero a Clarice capaz de personagens como Macabéa ou G.H.
Tainara Machado
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18 de abril de 2017 at 16:03
Olá! Um tema tão discutido nos últimos meses é como o machismo está enraizado nos clássicos, mas não tem como ser diferente, muitos foram escritos no século XVIII ou XIX, época em que as mulheres nem tinham direitos. E sim, romances com traição (apesar de eu achar que trazem lições ao final), são transgressores e podem serem vistos como uma forma de representatividade da insatisfação feminina ou até mesmo uma forma da mulher mostrar sua vontades em uma sociedade tão opressora. E a beleza de um clássico não precisa ser ofuscada pelos escritos que demonstram um comportamento não condizente com os tempos atuais. Saindo do tema feminismo/machismo, imagine se formos banir todos os livros que relatem as mortes pela fogueira da Inquisição porque isto não se pratica mais. Um livro deve ser lido com conhecimento de contexto histórico e lê-lo na atualidade e gostar da leitura não quer dizer que compactuamos com as ações erradas praticadas em outras épocas. Abraço!
19 de abril de 2017 at 21:26
Tem toda razão, Maria! Como sempre, obrigada pelo seu comentário! É exatamente essa a ponderação que a Carol Bensimon faz no texto da revista da TAG deste mês. É muito pouco proveitoso tentar analisar os clássicos com valores contemporâneos. São obras ainda mais importantes por ecoarem uma moral que, ainda bem, ficou velha!