Criar uma história e um personagem já requer uma habilidade admirável. Imagine, então, inventar um lugar que não existe? Cidades, países, reinos e mundos novos: a literatura está cheia desses cenários que nos encantam e nos intrigam com suas paisagens e culturas diversas, nem sempre tão distantes de nossa realidade. Na lista de hoje, separei 5 lugares fictícios, de fábulas a distopias, que exploram o imaginário para abordar dilemas políticos e filosóficos.
1. Macondo, em Cem Anos de Solidão: impossível não incluir nessa seleção a aldeia fictícia mais famosa da literatura latino-americana. Gabriel García Márquez, escritor colombiano mestre do realismo mágico, deu vida a Macondo a partir da incrível história das sete gerações da família Buendía, cujas raízes estão no mítico povoado. O apogeu e o declínio da aldeia se confundem com os sucessos e fracassos da estirpe.
Macondo era então uma aldeia de vinte casas de pau a pique e telhados de sapé construídas na beira de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome, e para mencioná-las era preciso apontar com o dedo.
As paisagens e os povos latino-americanos são a fonte de inspiração de García Márquez. Na cerimônia do Nobel de Literatura, o escritor colombiano fez um discurso bastante político, ressaltando que, mais do que uma expressão literária, o que havia chamado a atenção da Academia Sueca de Letras era essa “realidade descomunal” retratada em sua obra. Macondo, os Buendía e tantos outros personagens e lugares fantásticos da obra de Márquez desafiam a visão colonialista da Europa em relação aos povos americanos:
A América Latina não quer nem tem por que ser um peão sem rumo ou decisão, nem tem nada de quimérico que seus desígnios de independência e originalidade se convertam em uma aspiração ocidental.
Macondo, mesmo não existindo no mapa, é logo ali (ou aqui).
2. Oceânia, em 1984: o Grande Irmão, líder simbólico do Partido controla a tudo e todos. O Ministério da Verdade reescreve a história e altera os fatos. A Novafala, idioma imposto pelo Partido, renomeia as coisas, as instituições e o próprio mundo. Winston, o herói do romance, desperta para o fato de que vive aprisionado em uma engrenagem totalitária dominada pelo Estado e decide se rebelar contra o sistema, em uma aventura arriscada pela liberdade e pela verdade:
O Partido dizia que a Oceânia jamais fora aliada da Eurásia. Ele, Winston Smith, sabia que a Oceânia fora aliada da Eurásia não mais de quatro anos antes. Mas em que local existia esse conhecimento? Apenas em sua própria consciência que, de todo modo, em breve seria aniquilada.
Achou tudo muito fantasioso? Essa distopia futurista de George Orwell, que se passa na fictícia Oceânia, pode estar mais próxima da realidade do que parece, principalmente em tempos em que pensamentos e comportamentos extremistas ganham força ao redor do mundo.
Logo após a eleição de Trump nos Estados Unidos, as vendas de 1984 dispararam quando uma de suas assessoras saiu em defesa do porta-voz da Casa Branca dizendo que sua versão sobre o público presente na cerimônia de posse, muito mais generosa do que o fiasco retratado nos jornais, eram “fatos alternativos”. Em sua obra, Orwell trabalha esse conceito com o termo “duplipensar” que significa o poder de “sustentar duas crenças contraditórias na mente simultaneamente, aceitando as duas”. Talvez 1984 não esteja tão distante de 2017.
3. ONAN, em Graça Infinita: no grande romance de David Foster Wallace, os Estados Unidos e o Canadá foram substituídos pela poderosa ONAN, a Organização das Nações da América do Norte, que se vê ameaçada por separatistas quebequenses.
Nesse novo mundo, uma porção do continente se transformou em depósito de lixo tóxico e até a contagem dos anos foi vendida para as grandes corporações. Ao cenário caótico, soma-se uma sociedade nada empática e totalmente alienada pelo entretenimento, cujo poder é tão grande, que chega a ser usado como arma de guerra. A narrativa é conduzida pelos passos dos irmãos Incandenza – membros da família mais disfuncional da literatura contemporânea.
Cômico, doloroso, assustador e brilhante, esse universo de Graça Infinita só poderia ser obra de David Foster Wallace.
4. País das Maravilhas, em Alice no País das Maravilhas: as peculiaridades de um mundo onírico, onde tudo é possível e o imprevisível é a regra e não a exceção, ganharam forma na escrita do inglês Lewis Carroll.
Objeto de inumeráveis estudos em vários campos do conhecimento – Filosofia, Psicologia, Literatura e até Matemática – Alice no País das Maravilhas traz o olhar infantil, mas não ingênuo, de uma personagem que vai parar em um reino mágico. Os episódios, quando analisados além da superfície fantasiosa, revelam profundas reflexões acerca da condição humana e também da sociedade da época.
A espontaneidade e perspicácia de Alice em um mundo cheio de criaturas presunçosas, mal-humoradas e falastronas são os grandes diferenciais dessa obra. A personagem de espírito livre e que não se intimida diante da autoridade imposta se contrapõe à esterilidade criativa da era vitoriana de então, marcada pelo conservadorismo cultural e pela moral puritana. O fictício País das Maravilhas é uma sátira de sistemas fechados e hierárquicos que obstruem a imaginação e a inteligência:
Voltando-se para Alice, tornou a perguntar: – Como é seu nome, minha jovem?
– Meu nome é Alice, às suas ordens, Majestade – disse ela com muita educação. Mas ao mesmo tempo pensava:
“Ora vejam só, eles não passam de um punhado de cartas de baralho. Não preciso ter medo deles.”
5. Terra do Nunca, em Peter e Wendy: mais um clássico da literatura infantojuvenil que se passa em terras mágicas. A história do menino que se recusa a crescer já ganhou incontáveis adaptações para o cinema e para o teatro, mas raramente é lida em sua forma de livro.
Há várias teorias sobre a origem da figura de Peter Pan. Muitas delas atribuem o personagem a uma projeção da vida íntima, bastante conturbada e controversa, do autor J. M. Barrie.
Mas como bem escreveu Jack Zipes no posfácio da belíssima edição da Cosac Naify, muito além das ligações com a trajetória de Barrie, “Peter Pan é um ícone cultural que se recusa a ser civilizado”. Assim como Huck de As Aventuras de Huckleberry Finn, e Dorothy, de O Mágico de Oz, Peter Pan é mais um personagem que “rejeita sua sociedade para viver em outros domínios”. A Terra do Nunca surge, nessa perspectiva, como um o reduto que acolhe sua rebeldia:
Assim, com um ou outro percalço, mas no geral de maneira bem divertida, eles foram se aproximando da Terra do Nunca; pois só depois de muitas luas eles chegaram, e, mais ainda, viajando praticamente em linha reta o tempo todo, nem tanto graças à orientação de Peter ou de Sininho, mas porque a ilha estava à procura deles. E é só assim que alguém consegue chegar a essas praias mágicas.
E você, se lembra de algum lugar fictício da literatura? Deixe aqui nos comentários!
Mariane Domingos
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