Ao discursar para uma plateia de acadêmicos sobre o realismo, no primeiro capítulo de Elizabeth Costello, a escritora, que dá nome ao aclamado livro de J. M. Coetzee, questiona as excessivas interpretações a que submetemos as obras literárias:
Houve um tempo que sabíamos. Costumávamos acreditar que quando o texto dizia ‘Havia um copo d’água sobre a mesa’, havia de fato uma mesa com um copo d’água sobre ela, e bastava olhar para o espelho-palavra do texto para vê-los. Mas isso tudo terminou. O espelho-palavra se quebrou, irreparavelmente, ao que parece.
A reflexão, logo nas primeiras páginas desse livro, quando a autora discursa na cerimônia de entrega de um prêmio literário, marca irremediavelmente o fluxo da leitura. Dali para frente, é praticamente impossível continuar a acompanhar a narrativa sem pensar nos significados – visíveis ou sutis – das palestras e diálogos de Elizabeth Costello.
O livro não é exatamente um romance, pois a narrativa alterna ensaios com passagens ficcionais, entre as quais as mais interessantes são aquelas narradas pelo filho da personagem principal. A partir dessa premissa ambígua, Coetzee escreveu, ao mesmo tempo, um “metalivro”. Costello passa boa parte do tempo questionando seus valores como escritora, o poder da literatura, quais critérios avalizam que um pensamento passe para a página escrita.
Não é que lhe faltem opiniões. Costello, uma espécie de alter ego de Coetzee, é uma escritora reconhecida, em torno da qual se desenvolveu uma “pequena indústria crítica”. O livro que a alçou à fama foi A Casa da Rua Eccles, cujo personagem principal é Marion Bloom, mulher de Leopold Bloom, por sua vez o narrador de Ulysses, de James Joyce, uma releitura não muito incomum na obra de Coetzee (como Foe, por exemplo).
Do alto desse papel de autoridade na cena literária, o que cabe à Costello é viajar o mundo professando opiniões, nem sempre bem-vindas. Coetzee, que assim como sua personagem é avesso a entrevistas, também já teve suas temporadas como ensaísta. Parte das palestras proferidas pela personagem foram, inclusive, tema de uma série de leituras que o escritor proferiu quando foi convidado a dar um curso em Princeton, nos Estados Unidos, sobre questões éticas.
As palestras de Costello são tão repletas de reflexões filosóficas, com uma amplitude tão grande de temas – a voz das mulheres nos romances, as relações sexuais entre deuses e humanos, o realismo na ficção, o romance africano, o futuro da humanidade – que o livro com certeza merece uma segunda leitura.
Mas um dos tópicos, sobre os direitos dos animais, no terceiro capítulo, chamou particularmente a minha atenção. Dessa vez, ela é convidada pelo fictício Appleton College para proferir a Palestra Gates. Coincidentemente, seu filho, que até então preferiu resguardar seu parentesco com a famosa escritora, dá aulas na mesma universidade, e por isso é o hóspede natural da mãe, ainda que ela e sua esposa não se deem bem, por motivos que ficarão mais visíveis à frente.
Em sua palestra, Costello não fala sobre sua obra ou sobre literatura, como era esperado, mas prefere abordar os direitos dos animais, seu “cavalo de batalha”, como chama seu filho, John. Compara os abatedouros, pesqueiros e laboratórios aos campos nazistas, para desconforto da plateia, e evoca o conceito de “ignorância involuntária” ao mencionar que todos ali presenciavam ou ao menos sabiam dessa matança, à semelhança dos alemães, e preferiam o silêncio.
Costello prossegue com o raciocínio ao afirmar que não há diferenças entre o sofrimento animal e o humano porque o que nos garante certa “superioridade” se baseia em um princípio essencialmente tautológico, a razão.
Pois vista de fora, sob o prisma de um ser alheio a ela, a razão é simplesmente uma vasta tautologia. É evidente que a razão validará a razão como princípio primeiro do universo. O que mais poderia fazer? Destronar-se? Os sistemas de raciocínio, como sistemas de totalidade, não têm esse poder.
O valor essencial para os animais, argumenta ela, é a “sensação de ser”, algo que obviamente não pode ser plenamente desfrutado por um animal confinado. “A plenitude de ser é um estado difícil de sustentar em confinamento”, diz.
A argumentação pode ser rebatida, como o será ao longo do jantar que se segue à palestra, mas ainda assim é difícil ficar incólume ao argumento de que presenciamos assassinatos em grande escala e ficamos indiferentes a eles. Podemos nos posicionar contra agressões frontais, como o uso de animais em cruéis testes laboratoriais, mas somos, na maioria das vezes, capazes de lidar com a ideia de rebanhos em matadouros sem grandes crises de consciência.
A preferência pela ignorância seletiva nos remete ao brilhante ensaio de David Foster Wallace sobre o mesmo assunto, a partir de outra abordagem. Nele, Wallace visita uma feira de lagostas no Maine e, de forma indireta, questiona a crueldade dos hábitos alimentares que envolvem o crustáceo (o que me convenceu a nunca comer uma lagosta, ainda que não tenha abdicado de carne animal no geral, reforçando o argumento acima):
Por que uma forma primitiva e inarticulada de sofrimento seria menos urgente ou desconfortável para a pessoa que está colaborando com ela ao pagar pelo alimento resultante desse sofrimento? (…) estou tentando compreender e articular alguns dos questionamentos perturbadores que vêm à tona em meio às risadas, à animação e ao orgulho comunitário do Festival da Lagosta do Maine. A verdade é que, se comparecendo ao festival o sujeito se permitir cogitar que as lagostas podem sofrer e que prefeririam que isso não acontecesse, o Festival da Lagosta do Maine começa a ficar parecido com um circo romano ou um festival de torturas medievais.
Apesar de sua palestra, Costello evita enunciar princípios alimentares. Em resposta a um ouvinte na plateia que lhe questiona se ela defende o fechamento de fazendas industriais, a escritora responde:
Nunca tive muito interesse em interdições, alimentares ou de qualquer outra natureza. Interdições, leis. Estou mais interessada no que há além delas.
A resposta estimula o debate posterior, já no jantar oferecido a alguns convidados, no qual se fala da posição de autoridade que aqueles que abdicam de algum alimento se colocam, uma crítica que vem especialmente de Norma, sua nora, que se ressente das posições de Costello.
A mesa como um campo de batalha é um aspecto essencial da modernidade. O que é sagrado e o que é profano? O que é puro e o que é impuro? No modismo da alimentação vegetariana ou “funcional”, não há certo elitismo que separa aqueles que podem embarcar nessa nova relação com os alimentos em relação à população comum, preocupada com a subsistência?
Ao fim da discussão sobre a ética contida na decisão de se alimentar de animais, enquanto Costello é levada pelo filho de carro para o aeroporto, se desenrola uma das cenas mais sensíveis de todo o livro. John pergunta por quê ela abraçou com tanta intensidade a causa animal.
(…) não sei mais onde estou. Aparentemente, eu me movimento perfeitamente bem no meio das pessoas, tenho relações perfeitamente normais com elas. É possível, me pergunto, que todas estejam participando de um crime de proporções inimagináveis? Estou fantasiando isso tudo? Devo estar louca! No entanto, todo dia vejo provas disso. As próprias pessoas, de quem desconfio, produzem provas, exibem as provas para mim, me oferecem. Cadáveres. Fragmentos de corpos que compraram com dinheiro.
Enquanto ela chora, ele a abraça e a conforta. “Calma, calma, já está quase no fim”. O contraste entre a aridez dos embates filosóficos e as experiências emocionalmente desgastantes da vida real permeiam todo o livro. É uma obra inusual, mesmo em face dos demais títulos já escritos por Coetzee, um mestre do desconforto.
Tainara Machado
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