Quando o passado oprime o presente e se impõe como único caminho possível para o futuro não resta muita saída a não ser a memória. Em O Mar, do premiado escritor irlandês John Banville, Max Morden é um velho historiador de arte que busca na cidade de veraneio de sua juventude o calmante para a angústia que o abateu desde a morte da esposa, Anna.
Banville imprime na narrativa o ritmo oscilante da memória: de um parágrafo a outro, sem preâmbulos, o leitor passa de observador do adolescente Max a espectador do introspectivo viúvo.
Max refugia-se na mesma casa, hoje transformada em uma pensão, onde conheceu, há muitos anos, os gêmeos Chloe e Myles, filhos do exuberante casal Grace. As diferenças sociais – claramente marcadas pelo fato de Max e seus pais se instalarem em um humilde chalé e os Grace, em uma bela casa de aluguel – não impedem que as crianças estabeleçam uma espécie de amizade, ou melhor, um companheirismo de verão.
A paixão platônica e adolescente que Max nutria pela Sra. Grace foi o que o levou a se aproximar dos gêmeos – eles eram seu passaporte de entrada para a casa e para intimidade daquela família. Logo, esse sentimento, tão intenso quanto efêmero, é esquecido e dá lugar a outra paixão.
A memória que Max desperta remete à formação de sua identidade. À medida que a narrativa avança, fica claro que não são apenas lembranças ao léu. Os fatos que ele recorda marcaram, de maneira incontornável, sua existência.
Banville constrói com habilidade o clímax da história: os segredos da trama são inseridos com sutileza. Em nenhum momento, eles sobrepõem o mote inicial do romance que é a visita ao passado como forma de resgate da identidade. Os mistérios e a ação ganham os holofotes na hora certa, quando todo o processo de busca do personagem já está quase no fim.
É válido notar que Max não é um narrador indulgente. Seja em relação a si mesmo ou à companheira amada, ele não demonstra pudor em retratar os defeitos, as fraquezas e o egoísmo na maneira como o casal, preso em sua bolha autossuficiente de compreensão mútua, se relacionava com o mundo. A própria indiferença com a filha Claire, especialmente após a morte de Anna, é prova de sua incapacidade para conceber uma realidade em que a esposa já não estava:
Atualmente preciso me defrontar com o mundo em pequenas doses muito bem medidas, é uma espécie de tratamento homeopático, embora eu não saiba ao certo qual condição estará sendo tratada. Talvez eu esteja aprendendo a viver de novo em meio a gente viva. Quer dizer, treinando. Mas não, não é isso. Estar aqui é só um modo de não estar em parte alguma.
A estratégia de Max de recorrer ao passado soa como um esforço último para recuperar uma existência que antecede a presença de Anna. A ausência da esposa torna seu presente insuportável. O narrador tenta se convencer do comportamento cíclico do tempo para, então, vislumbrar um futuro em que sua história não passará de um rastro ilegível no mundo:
Assim nas mentes de muitos cada um se ramifica e dispersa. Não perdura, não tem como perdurar, não é a imortalidade. Carregamos os mortos conosco só até morrermos nós também, e então nós é que somos carregados por algum tempo até nossos carregadores tombarem por sua vez, e assim por diante inimagináveis gerações afora.
A subjetividade da memória é mais um aspecto desse romance. Max não esconde que aquelas páginas resultam de um exercício íntimo. O que ele tem em sua mente são, em uma referência sutil à sua profissão, quadros sem movimento que ganham vida em um processo de resgate completamente subjetivo.
Outro elemento fundamental da força narrativa de Banville são suas descrições minuciosas. Elas fazem com que os lugares – a casa de veraneio, a cidade e a praia – assumam papéis de personagens da história.
O mar é um deles. Aparece já na capa e permeia, delicadamente, toda história. O movimento das ondas, ensina Max, embora seja um ir e vir constante, não é nada previsível – ora levanta, ora derruba, ora devolve, ora toma. Assim também é a vida. A existência humana é refém de um jogo cíclico: o presente se torna passado na mesma velocidade em que os rastros da memória são apagados.
Mariane Domingos
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