[Enclausurado] Semana #5

Uma reviravolta digna de tragédia shakesperiana aconteceu nas últimas páginas, o que levou Trudy e Claude a acelerar seus planos. Nosso feto, assim, se vê cada vez mais perto de uma encruzilhada: a prisão ou o Paquistão? Está difícil não devorar as últimas páginas de Enclausurado, de Ian McEwan. Haja autocontrole! Para a próxima semana, avançamos mais dois capítulos, até a página 115.

Por Mariane Domingos e Tainara Machado

A visita inesperada de John Cairncross à casa de St. John’s Wood trouxe reviravoltas importantes à história. Até aqui retratado como um homem fraco e ingênuo, perdido em sua poesia, John de repente muda de posicionamento, em uma tentativa de virar o jogo com sua mulher.

O modo como Ian McEwan conduz a narrativa faz com que tudo aconteça devagar, no tempo do feto no útero de sua mãe, que parece um pouco mais lento do que estamos acostumados. John não chega à casa sozinho, e sim acompanhado de Elodia, que logo descobrimos ser uma poeta cujas obras têm como tema principal as corujas. A partir daí, os dois casais vão encenar uma improvável (e longa) troca de amenidades, enquanto esperamos para saber a razão pela qual aqueles quatro indivíduos (ou cinco, melhor dizendo) estão reunidos sob o mesmo teto.

O narrador, apesar de sua inteligência e de sua capacidade aguçada de percepção do mundo, tem dificuldade em entender esse teatro que antecipa o xeque-mate:

Nenhuma criança, muito menos um feto, jamais dominou a arte da conversa fiada ou desejaria fazê-lo. É um truque de adultos, um pacto com o tédio e a falsidade. No caso, mais com esta última.

Trudy, mais capaz de antever que algo caminha para o lado oposto ao imaginado, fica cada vez mais tensa com a situação, o que se reflete no diálogo repleto de ironia que os casais encenam diante da mesa, numa passagem quase teatral. O feto, aos poucos, entende o que importa neste rito:

Cada um de nós, de ângulos diferentes, está fixado no que não é dito.

E McEwan consegue, claro, nos fazer ouvir esses silêncios. A conversa fiada, porém, é apenas prelúdio para um longo discurso de John, no qual ele celebra o amor que já existiu entre ele e Trudy de forma excessivamente entusiasmada e menos irônica do que ele gostaria (sentimos certa dor de cotovelo, John!), ao mesmo tempo em que anuncia a retomada da casa, seu reconhecimento da traição pelo irmão e o ódio que agora nutre pela ex-mulher.

Sua decisão de expulsar Trudy é dada como um ultimato: ela deve deixar o imóvel até a manhã seguinte. O narrador pressente o perigo, enquanto Trudy é capaz de apenas uma frase quando vê o ex-marido ir embora:

Quero ele morto. E tem que ser amanhã”.

A reviravolta na história nos revela novas facetas de três personagens. John não é tão desinformado e bobo quanto parecia nos primeiros capítulos. Trudy é mais impulsiva do que demonstrou quando colocou em dúvida o plano de assassinato (seja por sua consciência ou pelo medo de ser apontada como a única culpada). E, na disputa de força dos pais, o feto também vai transformando (ou melhor, formando) seu caráter.

A preocupação inicial de tomar uma posição – estar ao lado do indefeso John ou assumir o inescapável laço materno que o une à Trudy – vai sendo substituída por uma consternação mais egoísta. O narrador passa a ponderar qual cenário seria melhor para ele, sem julgamentos morais da situação. Chama sua atenção, no discurso do pai, o esquecimento de sua existência. John diz que quer distância total de Trudy, a expulsa de casa e nem sequer se lembra do filho:

Ele rendeu homenagens às lembranças sinceras e se esqueceu de mim. Correndo rumo ao seu próprio renascimento, ignorou o meu nascimento. Pais e filhos. Ouvi uma vez e nunca esquecerei. O que os liga na natureza? Um instante de tesão cego.

O feto começa a perder sua inocência e tem consciência disso. Ele inicia uma reflexão filosófica sobre o quanto esse deveria ser seu momento de beatitude, afinal ele está encerrado em um espaço exíguo e sozinho, sem nada a fazer “senão existir e crescer”. No entanto, a mãe o jogou nessa história sórdida e agora não há mais volta.

Nesses dois últimos capítulos, McEwan explorou muito bem o poder dos silêncios. Trudy, John, Claude e Elodia falaram nas entrelinhas. Assistimos ao teatro da vida real. Todos vestiram suas máscaras públicas e encarnaram personagens. O feto achou que poderia se livrar dessa “conversa fiada”, desse embate nocivo do íntimo e do público, mas nem tudo é tão simples. Seu “tédio existencial” não o exime de seus fantasmas. Até que ponto ele já está envolvido em um crime?

Outro aspecto interessante dessa última leitura é a passagem em que o feto escuta os amantes correndo para definir em horas um plano que vinha sendo elaborado nas últimas semanas. Em sua descrição, ele confunde o barulho que os dois fazem com o som produzido por ratos. A referência ao animal asqueroso, que frequentemente é invocado para adjetivar pessoas sem caráter, não é à toa. Assim como não deve ser em vão a sujeira física que caracteriza o objeto que está nos primórdios de toda disputa – a mansão. Por que será que McEwan insiste em nos mostrar a imundície da casa? Será essa apenas mais uma metáfora sobre o comportamento humano ou ele irá resgatar esse ponto para compor a narrativa policial que faz parte do romance?

Esperamos as cenas dos próximos capítulos!

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2 Comentários

  1. Nunca havia lido McEwan, estou adorando o livro.
    Sou apaixonada por Hamlet, já assisti a várias versões no Teatro, inclusive a com o Wagner Moura. Mas confesso que esta com um feto foi realmente uma surpresa e ideia genial.
    Não tinha pego a parte dos ratos.
    Sensacional análise meninas.

    • Que bom que está gostando, Lilian! 🙂 A cada novo comentário, sarcasmo e atitude do nosso peculiar narrador, também fico impressionada com a genialidade de McEwan. Como alguém pode ter uma ideia assim, não? Esse é aquele tipo de livro que nos faz lembrar por que a ficção e a literatura são tão legais!

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