Todos os dias, quando abrimos o computador, damos alguns passos em direção a um gigantesco tribunal. Nele, os juízes não precisam de provas. Bastam tênues evidências, relatos de testemunhas improváveis ou indícios de culpa que o veredicto é dado quase em tempo real. Basta ficar online.
No mais recente romance de Michel Laub, O Tribunal da Quinta-Feira, quem está nos bancos dos réus é José Victor, um publicitário de 43 anos, recém-divorciado, que vê boa parte de suas conversas eletrônicas com o melhor amigo expostas na internet de forma parcial e inescrupulosa.
Fora de contexto, as mensagens vazadas, que falam de sexo, relacionamentos, traições e hábitos estomacais, são ofensivas, preconceituosas e algo humilhantes. É fácil, portanto, para quem está do lado de fora do espetáculo, atacar o publicitário misógino e seu amigo. A reflexão que Laub faz sobre linchamento virtual quando a proteção é o anonimato é daquelas passagens que por si só já valem a leitura:
Todo fascista julga estar fazendo o bem. Todo linchador age em nome de princípios nobres. Toda vingança pessoal pode ser elevada a causa política, e quem está do outro lado deixa de ser um indivíduo que erra como qualquer indivíduo, entre meia dúzia de atos entre os milhares praticados ao longo de quarenta e três anos, para se tornar o sintoma vivo de uma injustiça histórica e coletiva baseada em horrores permanentes e imperdoáveis.
O tribunal, no qual se é réu e vítima ao mesmo tempo, é a metáfora no qual João Victor se baseia para remontar os acontecimentos que levaram ao seu julgamento. Ainda que não seja exatamente uma imagem original, ela é usada perfeitamente para traduzir um período em que relacionamentos, histórias, carreiras e reputações são destruídas em um estalo de dedos, sem direito ao contraditório. Ou mesmo defesa. Fora da literatura, não são poucos os exemplos de pessoas reais que se viram atacadas por postagens de conteúdo claramente ofensivo, mas talvez não merecedoras dos desfechos a que esses casos levaram, como nesta reportagem do El País.
Ao mesmo tempo que discute a moral que nos guia em nossa vida online, Laub também retoma um assunto que “saiu de moda” desde que a AIDS, que matou milhares de pessoas nos anos 80, passou a ser uma doença sob controle. O assunto, em vez de ganhar ampla repercussão, virou quase tabu. Ou, como resume o próprio narrador:
Esta história vai muito além da discussão sobre fidelidade e compromisso. Sobre desejo e indiferença. Sobre público e privado. Porque esta é uma história sobre tudo isso, sem dúvida, mas não nos esqueçamos que acima de tudo é uma história sobre morte.
O fato de que o melhor amigo do narrador é portador do vírus reverbera por todo o livro, enquanto uma espécie de “história” da doença é traçada, relembrando o período em que o vírus era uma epidemia sem perspectiva de controle. A carga emocional de quem viveu a explosão da doença há três décadas não permite que o resultado positivo do exame seja encarado de forma muito diferente do que uma sentença de morte. A profundidade da intimidade na relação entre os dois amigos, no entanto, vai muito além do diagnóstico, e é por isso mesmo que João Victor é sempre capaz de fazer ao leitor os questionamentos necessários. ‘E se fosse eu?’, nos perguntamos o tempo todo.
Laub nunca se esquivou de dilemas morais em suas obras, nais quais há sempre um ponto que relativiza culpas e danos. Embora em uma primeira análise a trilogia formada por Diário da Queda, A Maçã Envenenada e O Tribunal da Quinta-Feira tenha pouco em comum – a história do menino judeu que deixa o amigo cair na sua festa de aniversário, um gaúcho que vem para São Paulo acompanhar o show de sua banda favorita e o publicitário que tem suas conversas vazadas na internet – todos eles tratam de dilemas morais que enfrentamos no tribunal diário que é o convívio social, além de mostrarem, como escreve a Companhia das Letras, “os efeitos individuais de catástrofes históricas”.
O Tribunal da Quinta-Feira é, talvez, o livro mais impressionante entre os três porque é nele que o domínio da linguagem que Laub já demonstrava em Diário da Queda atinge plena maturidade. O ritmo da prosa, que alterna longas sentenças com sequências de frases curtas e cadenciadas, é inebriante. A construção dos raciocínios ao longo dos parágrafos, sempre por meio de hipóteses e negações, contribuem para uma sensação de maravilhamento quando terminamos alguns trechos. Um exemplo:
Só que Walter não avisou ninguém. Ou melhor, avisou. Silêncio no tribunal, a sessão vai começar. Solicita-se a presença do outro réu. Ele também será submetido ao tratamento da casa. Bastam algumas piadas sobre merda. Basta meia dúzia de mensagens sobre cu. Basta uma meia dúzia de termos ofensivos registrados no presente eterno das caixas virtuais, e algo escrito há anos e em outro contexto equivale a uma ofensa cara a cara dita hoje. Basta um casamento de quatro anos que chegou ao fim há três meses, uma casa vazia e a melancolia de Teca num domingo de 2016, a vida que recomeça devagar, a solidão que dá uma ferroada quando menos se espera, e minha ex-mulher mexe em armários e gavetas até que acha uma pasta que deixei lá não sei por que razão.
A nota dissonante nessa narrativa são os últimos dois capítulos, que não têm o fôlego do restante do livro. Até o narrador reconhece que, no fim, há certo tom de autoajuda, de parábola perfeita do anjo caído que se recupera. No julgamento, a absolvição vem de onde menos se espera. A vida, afinal, transcorre fora da tela do computador.
Tainara Machado
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