Na semana passada, em uma longa entrevista dado ao crítico literário do The New York Times, Michiko Kakutani, Barack Obama, agora ex-presidente dos Estados Unidos, falou um pouco da sua relação com os livros e contou que deu de presente para sua filha um Kindle recheado de livros importantes para sua formação.
Ali estão, segundo ele, “conhecidos suspeitos”, como Cem Anos de Solidão, do Gabriel García Márquez, e outros títulos não tão onipresentes nas listas de leituras, mas que são poderosos, tais quais O Carnê Dourado, de Doris Lessing.
Inspirada por esse presente tão especial, foi quase impossível não fazer uma retrospectiva dos livros que tiveram particular impacto sobre mim nesses últimos anos, e aos quais volto sempre que preciso de algum conforto. Não são, como disse Obama, necessariamente clássicos da literatura mundial, mas livros com mensagens poderosas sobre assuntos por vezes banais.
É o caso de As Correções, de Jonathan Franzen. O livro, sobre uma família que precisa aprender a lidar com o pai doente, com Alzheimer, tem passagens perturbadoramente desconfortáveis, e ao mesmo tempo cômicas, e nos mostra quão pouco sabemos ainda sobre envelhecimento. De uma maneira ou de outra, é uma realidade com a qual todos nós vamos nos deparar.
Meu “Kindle” imaginário também não poderia deixar de lado minha história de amor preferida, contada com maestria por Gabriel García Márquez em O Amor nos Tempos do Cólera. Um dos poucos livros que reli já algumas vezes, a história dos amores de Fermina Daza é inesquecível. Além do reencontro improvável com Florentino Ariza, que esperou 50 anos pelo amor da sua vida, a doçura com que Gabo descreve o travo amargo do cotidiano em um longo casamento é sempre uma fonte de inspiração. Como aprendemos com a convivência, às vezes é a disputa por um sabonete no banheiro que pode acabar com os relacionamentos
Outro autor que influenciou muito minha adolescência foi José Saramago. A partir de O Homem Duplicado, li seus livros praticamente em sequência e tive inclusive a oportunidade de vê-lo falar aqui em São Paulo. Sua lucidez, mesmo depois dos 80 anos, era tão impressionante quanto a imagem sombria que ele descreveu em Ensaio sobre a Cegueira. Nesta distopia, toda a população fica cega, com a exceção de uma única mulher, que sabiamente esconde esse fato dos demais. Na ausência de instituições que determinem regras e padrões para a convivência em sociedade, a humanidade caminha rapidamente para a barbárie, numa espécie de releitura do Leviatã de Hobbes, um pensamento que marcou muito a minha adolescência.
E há, claro, os livros sobre a barbárie em si. A memória é uma função primordial da literatura, ainda que nem sempre nos traga aprendizado, como observamos todos os dias com a guerra civil na Síria, ou com a ascensão de Donald Trump ao poder nos Estados Unidos. De toda forma, nunca é demais lembrar as atrocidades que já foram cometidas em nome do nacionalismo. Neste caso, considero essencial a leitura de É Isto um Homem e A Trégua, de Primo Levi. Seu relato quase desprovido de emoção do período em que foi prisioneiro do campo de concentração de Auschwitz nos faz questionar praticamente todos os valores que costumamos atribuir à humanidade.
Ainda sobre o mesmo tema, mas de um outro ponto de vista, não haveria como deixar de fora o livro sobre o julgamento de Adolf Eichmann, um dos oficiais responsáveis pelos campos de concentração nazista, escrito por Hannah Arendt. Eichmann em Jerusalém é um imperdível ensaio sobre como homens comuns podem praticar o mal sem questionamentos sobre moralidade. É a banalidade do mal, como escreveu Arendt. Mais chocante ainda é a discussão que ela trouxe sobre a conivência dos próprios judeus com a política genocida de Hitler, um tema que causou muito debate à época do lançamento do livro.
Hiroshima, do jornalista John Hersey, foi originalmente publicado pela revista The New Yorker e passou a ser referência como relato de grandes tragédias globais, por retratar a explosão da bomba nuclear nesta cidade japonesa do ponto de vista de seis vítimas. Ao dar nome e sobrenome para as pessoas que tiveram as vidas transformadas por este último capítulo da segunda guerra mundial, Hersey deu uma lição de jornalismo que perdura até hoje.
Mais recentemente, a jornalista Svetlana Aleksiévitch também procurou dar voz às pessoas que sofreram os efeitos do trágico acidente na usina nuclear de Tchernóbil. Vozes de Tchernóbil traz relatos, em primeira pessoa, que evidenciam como o espírito nacionalista do “homem soviético”, combinado com a tentativa das autoridades de abafar os desdobramentos do acidente, levaram a uma das maiores tragédias do século XX, com sequelas que perduram até hoje.
A minha formação também passou, claro, por grandes personagens femininas. Foi quase uma epifania quando, no terceiro volume da tetralogia napolitana de Elena Ferrante, a personagem principal reflete sobre como mesmo as visões femininas mais importantes da literatura partiam da caneta de um homem. Talvez venha daí a força dessa história sobre amizade, rivalidade, desigualdade social e de gênero na Itália dos anos 60, capaz de atrair milhares de leitores, no que ficou conhecido como #ferrantefever.
A nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie é outra voz poderosa nessa discussão. Autora de um manifesto indispensável, Sejamos Todos Feministas, Adichie falou no seu último romance, Americanah, sobre imigração, gênero e raça em meio a uma história de amor não concretizada.
E há, também, as leituras essenciais pela magnitude das histórias que contam. A Montanha Mágica, o livro de quase mil páginas de Thomas Mann, que alcançou grande popularidade com a nova edição pela Companhia das Letras, é um ótimo exemplo. Poucos livros são tão completos, abarcam tantos assuntos e, ao mesmo tempo, nos fornecem uma leitura tão prazerosa. A obra prima de Mann, sobre um homem enviado a um sanatório nas montanhas dos Alpes suíços, trata de botânica, filosofia, medicina, linguagem sem deixar de lado o componente humano necessário para que as histórias sejam bem sucedidas.
E, por último, não poderia deixar de acrescentar a essa lista um pouco de literatura brasileira. Pode parecer um pouco clichê, mas fico com Dom Casmurro, de Machado de Assis. A história de Bentinho e Capitu ganha nuances a cada nova leitura e não deixa nunca de intrigar a nós, leitores. Afinal, literatura também é isso: uma boa história.
Tainara Machado
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