Intensidade e precisão são duas características essenciais a um conto. Na coletânea O Sucesso, a escritora brasileira Adriana Lisboa equilibra esses dois elementos em narrativas envolventes cujo principal mérito é partir de episódios cotidianos para construir boas reflexões sobre as relações humanas.
As nove histórias têm personagens que lidam, em diversas fases da vida – infância, meia-idade ou velhice – com sentimentos arrebatadores – saudade, decepção, medo, desejo, raiva, entre outros. Essas diferentes faixas etárias revelam a habilidade de Lisboa em colocar o leitor, independentemente de sua idade, na perspectiva de quem conta ou vive a história.
No conto que empresta o título à coletânea, por exemplo, as personagens principais são duas adolescentes imersas naquele período de transição em que fantasia, expectativa e realidade misturam-se em um turbilhão de sentimentos:
Que estupidez ter doze anos de idade. Um mundo de criança para trás, os brinquedos recém-guardados na gaveta e uma facilidade no trato com as coisas e com as pessoas que havia desaparecido num estalo. Um purpurinado mundo adolescente diante delas, quase ao alcance da mão, mas ainda faltava. Ainda faltava. Aquele lugar onde elas estavam se chamava inferno. O inferno dos doze anos de idade. O corpo insubmisso, a realidade insubmissa.
Por mais que o leitor já tenha deixado há tempos a adolescência, é impossível não se identificar com essa descrição e entender por que os episódios narrados, embora à primeira vista pareçam banais, são verdadeiros dilemas na vida dessas duas garotas. A demora em frente ao espelho antes de sair, o encantamento pelas propagandas de televisão, a timidez diante dos garotos: a precisão de Lisboa na descrição do universo dessas adolescentes garante que cada fato, mesmo os mais cotidianos, ganhe contornos dignos de uma leitura atenta e ansiosa pelo desfecho.
Outro grande trunfo dessa coletânea é a cadência narrativa. Um dos principais perigos que um contista enfrenta é a pressa. Não é porque um conto tem poucas páginas que a história precisa ser atropelada. Ir com calma demonstra destreza, domínio da escrita. E Lisboa também se destaca nesse quesito.
A maioria dos contos desse livro não segue a ordem cronológica. O texto começa com um episódio aparentemente insignificante e, aos poucos, a autora destrincha uma série de fatos e emoções que trazem à luz uma trama profunda e, em alguns casos, até mirabolante. Em A Mocinha do Foto, por exemplo, a primeira frase é:
Foi quando Acácio parou de beber que ela teve certeza.
Lisboa brinca com a curiosidade. Ela fornece as informações a conta-gotas, mede as palavras e envolve o leitor. Quando parece que a narrativa está em um ritmo tranquilo, aparece algum elemento surpresa. Quase todos os contos têm reviravoltas. Lisboa sabe ser intensa no momento certo. Nas entrelinhas, ela mostra que as relações humanas são mesmo assim: imprevisíveis. Nem quem escreve a história tem o controle.
Os três últimos contos, Circo Rubião, O Escritor, Sua Mulher e o Gato e Glória, são, os melhores da coletânea. Em Circo Rubião, a verdade com que Lisboa descreve o impacto da magia do circo em uma cidade do interior é cativante.
Em Glória, a personagem Rosa deixa um nó na garganta do leitor ao reviver, no dia em que completa 72 anos, um fantasma de sua juventude.
Já emO Escritor, Sua Mulher e o Gato, Lisboa busca inspiração na linda história de amor de Andre Gorz e sua esposa, Dorine (já falamos do livro Carta a D. aqui), e cria o cenário perfeito para o fotógrafo recém-divorciado que encontra na sua profissão o antídoto à solidão que o assola desde que a mulher o deixou:
As coisas se perdem mesmo. Inevitável. Tirar fotografias não equivaleria, num certo sentido, a colecionar borboletas? O colecionador mata o inseto com éter, por avidez ou raiva, ou porque a beleza dói demais e ele não consegue aguentar. Deixa secar o corpo morto, as asas decepadas do movimento, espeta com alfinete, estica, escreve a etiqueta de identificação e guarda numa caixa de madeira com naftalina.
Eu poderia bolar uma etiqueta para as fotos daquela moça, meu nome como coletor.
A ânsia desse personagem por capturar momentos corriqueiros resume bem a ideia que perpassa todos os contos dessa coletânea. Em cada linha de seu texto preciso e intenso, Lisboa lembra que o cotidiano é extraordinário e que os momentos eternos são feitos de instantes banais.
Mariane Domingos
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