As famílias são microcosmos da sociedade. A escritora inglesa Zadie Smith explora essa ideia, com maestria, ao dar vida aos Belsey, clã que protagoniza seu romance Sobre a Beleza, obra finalista do Man Booker Prize e vencedora do prêmio Orange, de ficção.
Howard Belsey, inglês, branco e professor universitário, é casado há trinta anos com Kiki, uma enfermeira afro-americana. Eles são pais de Jerome, estudante de Brown, Zora, que frequenta a universidade em que o pai leciona, e Levi, um colegial que despreza o ambiente acadêmico de sua família. Já na descrição da casa dos Belsey, em Wellington, na Nova Inglaterra, Smith introduz com sutileza questões raciais e sociais que irão permear toda a narrativa:
A escada em si é um espiral íngreme. Para oferecer distração na descida, foi pendurada nas paredes uma galeria fotográfica da família Belsey (…). Estão dispostos em triunfante e calculada sequência: a tataravó de Kiki, uma escrava doméstica; a bisavó, criada; e depois sua avó, uma enfermeira. Foi a enfermeira Lily que herdou toda essa casa de um benevolente médico branco ao lado do qual trabalhou vinte anos na Flórida. Uma herança dessa escala muda tudo para uma família pobre americana; ela se torna classe média.
O romance é povoado por diálogos muito bem construídos que trazem à tona o choque entre liberais, conservadores e vários estratos da sociedade americana quanto à tentativa de reparar séculos de injustiça e exclusão contra os negros por meio de ações afirmativas (cotas, bolsas de estudos, entre outras).
Levi, por exemplo, é um personagem que, no início da história, beira o ridículo pela sua artificialidade ao agir como um “irmão” que usa a linguagem dos guetos e faz parte da “batalha”, quando, na verdade, mora na região mais abastada da cidade, é rodeado por intelectuais e não tem muito o que reivindicar. Ao longo do romance, o jovem passa por um processo de amadurecimento que o leva a questionar as verdadeiras intenções dos liberais esclarecidos que conhece e que proferem discursos efusivos de inclusão, mas pouco sabem da realidade que os cerca. Ele mesmo se descobre uma mentira:
Bastaria deixar o livro sobre o Haiti numa mochila esquecida dentro do armário por uma semana para que toda a ilha e sua história voltassem a ser obscuras para ele. Pareceria não saber mais nada sobre o assunto além do que sabia antes. Pacientes aidéticos haitianos em Guantánamo, barões da droga, tortura institucionalizada, assassinato patrocinado pelo Estado, escravidão, interferência da CIA, ocupação americana e corrupção. Tudo se tornaria uma névoa histórica. Restaria apenas a consciência abrasadora e inoportuna de que em algum lugar, não muito longe de onde estava, um povo passava por um imenso sofrimento.
As inquietações políticas acompanham as disputas acadêmicas. O arquirrival de Howard, o também professor universitário e guru conservador Monty Kipps, muda-se para a mesma universidade de Wellington e acirra a oposição entre os dois. Suas famílias já tinham enfrentado embates, recentemente, quando o filho mais velho de Howard, Jerome, decide ir para Londres e é abrigado pelos Kipps. O garoto, um cristão fervoroso a despeito do ateísmo do pai, se apaixona pela belíssima e instável filha de Monty, Victoria. O caso logo acaba, mas deixa marcas indeléveis na relação das duas famílias.
Assim como Howard, Kipps é um estudioso do artista holandês Rembrandt. Eles defendem correntes de pensamento totalmente opostas, da mesma forma que conduzem seu pensamento político. A família de Monty é calcada em valores arcaicos de submissão feminina e supervalorização do núcleo familiar, enquanto os Belsey vivem em um ambiente em que todos os padrões, o senso comum e até mesmo os sentimentos são alvos de comentários sarcásticos. Nem mesmo a arte, objeto de estudo de Howard, é poupada da ironia:
Howard pediu aos seus alunos que imaginassem a beleza como a máscara usada pelo poder. Que reformulassem a Estética como uma linguagem refinada da exclusão. Prometeu-lhes uma matéria que desafiaria suas crenças a respeito da humanidade redentora do que é usualmente denominado “Arte”. “Arte é o mito ocidental”, proclamou Howard, pelo sexto ano consecutivo, “com o qual ao mesmo tempo nos confortamos e nos formamos.”
A beleza não é tratada apenas conceitualmente no romance. Smith traz a filosofia para a prática, através do drama familiar dos Belsey e dos Kipps. O que é valor, o que é belo para esses dois clãs tão diferentes? O casal Belsey está mergulhado em uma relação decadente, envolvido em uma trama de traições e no silêncio devastador de desejos represados. Os Kipps posam de família perfeita, enquanto afundam secretamente em um mar de instabilidade.
Os problemas familiares são o ponto de partida de Smith para um romance que aborda temas universais, ao mesmo tempo em que retrata a artificialidade contemporânea. O íntimo e o público se confrontam. As tensões sociais que rodeiam os Belsey e os Kipps são um reflexo de seus embates domésticos. Os jogos de interesses estão em todos os âmbitos e têm força para derrubar qualquer ideologia, seja ela liberal ou conservadora. Cada um à sua maneira, todos os personagens desse romance enfrentam um processo de descoberta que leva à incontestável revelação de sua hipocrisia.
Mariane Domingos
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8 de dezembro de 2016 at 00:04
Estou monitorando esse livro a algum tempo – estava esperando baixar o preço hehe – engraçado que estava com a página aberta de um e-commerce exatamente no produto quanto vi seu post no insta – aliás parabéns pelo site e pelo bom gosto literário – acho que agora vou ter que comprar. <3
9 de dezembro de 2016 at 16:34
Olá, Marcelo! Que coincidência boa, acho que demos o empurrãozinho que faltava para sua compra, rs! Foi o primeiro livro de Zadie Smith que li e gostei muito! A história começa um pouco lenta, mas depois pega ritmo e fica difícil largar a leitura. Quando terminar, conte aqui o que achou. 😉
E obrigada pelos elogios ao blog! Esperamos sua visita mais vezes.