Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável.
A Paixão Segundo G.H. é um livro sobre a busca pelo real e pelo divino. Em pouco menos de duzentas páginas, Clarice Lispector escancara, através da personagem G.H., a condição humana.
Viver, segundo ela, é um segredo inalcançável para a grande maioria das pessoas que gasta os dias em um sonambulismo confortável, evitando uma epifania aterradora. Não ter a consciência da vida é o padrão, não a exceção.
Apesar da profundidade do enredo, Lispector não perde de vista a trivialidade do cotidiano. A escritora encontra nos fatos mais banais os gatilhos para o turbilhão de descobertas que coroa a narrativa.
G.H. é uma mulher abastada que mora no Rio de Janeiro. Está sentada à mesa do café, sozinha em sua cobertura, quando decide empreender uma atividade pouco usual para sua rotina:
Levantei-me enfim da mesa do café, essa mulher. Não ter naquele dia nenhuma empregada iria me dar o tipo de atividade que eu queria: o de arrumar. Sempre gostei de arrumar. Suponho que esta seja a minha única vocação verdadeira. Ordenando as coisas, eu crio e entendo ao mesmo tempo. Mas tendo aos poucos, por meio de dinheiro razoavelmente bem investido, enriquecido o suficiente, isso impediu-me de usar essa minha vocação (…).
O objeto da arrumação é o quarto de empregada, vazio desde a demissão da funcionária, de quem ela mal se lembra. O primeiro achado de G.H., naquele dia, é um cômodo de sua própria casa. Transitar com naturalidade entre o trivial e o extraordinário é uma marca da escritora brasileira. A grande revelação está para acontecer, mas Lispector começa a descrição do dia fatídico com simplicidade.
No quarto, G.H. é surpreendida por um vazio demasiadamente ordenado. Não fosse por um desenho misterioso na parede, que faz G.H. especular sobre a visão que a empregada tinha dela e sobre sua própria identidade, o branco do cômodo seria dominante.
O ambiente é perturbador. G.H. sente a necessidade de organizar o que já está organizado, afinal “arrumar é achar a melhor forma”. Cuidadosamente, ela explora cada canto daquele quarto minúsculo que, mesmo estando em sua casa, parecia não lhe pertencer.
Quando espreita o interior do guarda-roupa, um novo personagem entra na história – a barata. O animal asqueroso confronta G.H. com seu olhar. Não demora muito para que ela tome uma medida drástica: prensar o animal na porta do móvel. A partir daí, assim como o inseto, G.H. se vê encurralada:
Diante de meus olhos enojados e seduzidos, lentamente a forma da barata ia se modificando à medida que ela engrossava para fora. A matéria branca brotava lenta para cima de suas costas como uma carga. Imobilizada, ela sustentava por cima do flanco empoeirado a carga do próprio corpo.
A matéria que jorra da barata faz G.H. vislumbrar seu eu mais profundo. O que escorre fisicamente do inseto é o que se esvai metaforicamente de G.H. Sua humanidade e sua alma rebentam de seu corpo e se apresentam diante de todos os seus sentidos.
Acostumada a organizar o infinito do mundo em partes finitas, a dar limites ao que prescinde de forma, ela atravessa apavorada essa busca. Não há mais caminho de volta – “perdi alguma coisa que me era essencial e que já não me é mais”.
Ao ultrapassar as fronteiras do compreensível, G.H. põe em xeque a linguagem – outra característica da obra de Lispector. A personagem chega a um estágio em que as palavras já não lhe alcançam:
O nome é um acréscimo e impede o contato com a coisa. O nome da coisa é um intervalo para a coisa. A vontade do acréscimo é grande – porque a coisa nua é tão tediosa.
A negação da linguagem como fonte de significado é mais uma grande descoberta de G.H.. Mesmo seu nome já não lhe serve. Ela observa que, nas valises abandonadas no quartinho, as iniciais G.H. estão meio apagadas. Ela não podia voltar a ser como antes, quando era apenas seu nome. A necessidade de compartimentalizar o mundo fazia com que o verdadeiro sentido de viver e toda sua identidade lhe escapassem. A matéria branca da barata vinha, grotescamente e no momento mais trivial, lhe resgatar desse escuro.
Há ainda outros momentos decisivos que tornam esse enredo arrebatador. Não à toa A Paixão Segundo G.H. é tido por muitos como a obra-prima de Lispector. Em seu livro Clarice, uma biografia, o crítico literário e escritor Benjamin Moser diz:
G.H., com seu enredo breve, esboçado, é na verdade o clímax de uma longa busca pessoal. Pela primeira vez, Clarice escreve na primeira pessoa. E pela primeira vez ela capta a plena violência, a repugnância física, de seu encontro com Deus.
No prefácio do romance, Lispector já inquieta o leitor, com uma advertência cifrada:
Este livro é como um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada. Aquelas que sabem que a aproximação, do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente – atravessando inclusive o oposto daquilo que se vai aproximar.
Terminei a leitura com a certeza de que não deveria tê-la feito antes e com a sensação de que ainda devo voltar a ela. Daqui alguns anos, quem sabe.
Mariane Domingos
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30 de janeiro de 2018 at 18:45
Mariane, só o modo como você se apresenta, a moça que “valoriza as palavras, não propriamente as imagens, que prefere letras a números”, já faz de você alguém que possui um olhar diferenciado , que quer compartilhar sem se massificar.
Gostaria de dar a você o meu livro “Grafei sobre a Pele Delicada da Vida”. Quero muito ouvir sobre as reverberações dele em você. Também bebo na fonte de Clarice. Um amor que começou aos quinze e até hoje, nem imagina há quanto tempo, continua pulsante e cheio de segredos. Parabéns pelo blog. Quem é a outra amiga?
Espero contato. Estou começando a vencer as resistências para me movimentar em redes sociais. Espero por trocas verdadeiras, interessantes e humanas.
7 de julho de 2020 at 14:35
Adorei sua resenha, Mariane. Li a Paixão segundo G.H. no final da minha adolescência. Me impactou profundamente, e acho que só agora, já na casa dos trinta e poucos é que estou dimensionando esse impacto. Amo a escrita da Clarice e esse livro com certeza é o meu preferido dela.
Obrigada por seu trabalho em resgatar aqui a essência desse livro.
19 de outubro de 2020 at 18:47
não ajudou muito não essa resenha!
13 de janeiro de 2021 at 21:51
Estou lendo este livro pela primeira vez, aos 61 anos. Admito minha perplexidade diante de um texto tão inquietante e perturbador.
4 de março de 2021 at 03:17
Olá!
Esse livro de Clarisse é algo muito elevado. Acredito que posso compartilhar com vocês até porque só alguém que tem admiração e interesse pela leitura, se fará presente neste lugar!
Acredito que há dois anos tentei ler a paixão segundo GH e confesso não fui longe, sinceramente minha mente parecia estar embaralhada. Confesso agora que no início deste ano voltei a ler ele, não porque eu quis, mas eu tive um sonho, vivi algo louco neste sonho e ainda no sonho eu contava o que acabara de acontecer. Um personagem cujo não tenho memória de ter conhecido na vida real. Me falou que eu estava com o complexo de GH. Então acordei, fiquei imaginando o que teria sido isso. Me lembrei do livro e agora voltei a ler e realmente. Eu sei que não totalmente eu, mas realmente senti como se fosse a frase pra mim. Que ele “fosse lido apenas por pessoas de alma formada”. Então eu aqui compartilhando algo surreal. Agora é ter foco e continuar.
14 de março de 2021 at 22:48
Que história inusitada com esta obra, Gabrielle! Obrigada por compartilhar. E persista na leitura, porque Clarice exige concentração, mente e espírito abertos e, como você bem destacou, uma “alma formada”, mas sempre vale a pena!