A morte de um querido amigo foi um golpe duro para António, mas uma nova ideia parece, mais uma vez, lhe despertar de seu estupor e o colocar de frente para a vida. Continuamos a acompanhar as reviravoltas no Lar da Feliz Idade, em A Máquina de Fazer Espanhóis, de Valter Hugo Mãe. Na próxima semana, avançamos mais dois capítulos – até a página 198, se você tem a edição da Biblioteca Azul, ou até a página 186, se você tem a edição da Cosac Naify.
Por Mariane Domingos e Tainara Machado
a morte do joão da silva esteves, glorioso esteves cheio de metafísica, foi um duro golpe.
O início do capítulo treze de A Máquina de Fazer Espanhóis nos relembra que, na guerra contra a morte, uma hora ou outra vamos levar a pior. Mesmo assim, Esteves sem metafísica cairia de pé, se é possível assim dizer.
A morte, conta doutor Bernardo a António, o encontrou sorrindo, no meio de uma história. O que Esteves contava eram justamente os acontecimentos da noite passada, quando um pesadelo no qual uma máquina de roubar a metafísica dos homens lhe perseguia acabou levando-o a encerrar a noite no quarto de António. O personagem fica profundamente abalado pela notícia da morte do amigo que acabara de completar cem anos.
a longevidade dele foi uma demorada marcha contra a derrota.
Depois dessa perda irreparável, António volta para seu estado depressivo, do qual parecia ter conseguido se soltar nos últimos capítulos. A morte do amigo foi um choque, um segundo luto quando ele já não esperava se apegar a ninguém. Imaginava que a próxima morte que experimentaria só poderia ser a sua. A visita de Elisa o faz refletir sobre o assunto:
percebeu como eu retrocedera no tempo com a morte daquele amigo. a morte, afinal, dizia-lhe eu, vem mesmo de todos os lados e leva-nos tudo, mesmo aquilo a que nos agarramos para lhe fugir.
Mesmo que mais apático e de volta aos questionamentos sobre a injustiça de ter sido ele a metade do casal a sobreviver, António ainda encontra tempo para embates com o Silva da Europa, o homem que lhe fez companhia enquanto Laura morria.
O Silva da Europa, que por vontade própria decide se trancafiar ainda novo em um asilo, parece representar tanto a falta de liberdade em regimes ditatoriais quando a camisa de força imposta a Portugal pela adesão à União Europeia. É justamente a ele que Valter Hugo Mãe atribui o papel de apontar que a ditadura faz das pessoas tábuas rasas. É ele quem diz que os portugueses têm salário de ratos, que pagam a mesma coisa que os franceses pelos produtos, mas ganham um terço de seus salários.
É um personagem que, ao mesmo tempo em que expõe a opressão sobre o povo português nos últimos cinquenta anos, decide, por conta própria, abdicar daquilo que seria mais precioso para António: uma vida de fato, com as liberdades que lhe são inerentes.
A ideia de que Silva, aos sessenta e sete anos, se internou no asilo para ali ficar até ter que se despedir de todos os amigos, e quem sabe até de novos colegas, irrita Antonio.
Também o incomoda as provocações do amigo, que o chama invariavelmente de comunista, especialmente quando discutem política e economia. A visão de Silva da Europa é de que, por mais que aquelas conversas sejam inquietantes, elas são necessárias:
mas não é possível deixar de ter conversas comunistas enquanto não se largar a merda das ideias do capitalismo de circo que está montado. um capitalismo de especulação no qual o trabalho não corresponde à riqueza e já nem a mérito, apenas há um fardo do qual há quem não se consiga livrar.
Valter Hugo Mãe consegue unir, neste romance, temas universais, como a velhice, a solidão e a morte, a discussões sobre um período específico da História. A memória de António funciona como um portal que garante o despertar do que já passou, enquanto a sua vida atual permite a compreensão de sentimentos e experiências que estão no passado, no presente e no futuro, posto que são inerentes à condição humana. A versatilidade de Hugo Mãe faz com que essa obra seja uma forte candidata a perenizar e alcançar a alcunha de clássico.
Essa capacidade da literatura de viajar não apenas no espaço, mas também no tempo, começa a aparecer no romance. As cartas que António escreve a Marta, fingindo ser seu marido, já não são um segredo. A sensibilidade de seu texto ganha a admiração dos amigos que insistem que António deveria levar mais a sério esse dom:
essa pode ser a sua forma de praticar a cidadania, dizia o silva da europa. pense bem, deixar um livro cheio de poemas que fiquem para sempre a comunicar com quem lhes pegue, é como deixar uma voz amiga de toda a gente. pense no que hoje é ler o camões e como aquilo ainda nos diz respeito. pense como será deixar por sua mão algo que também chegue ao povo, para que o povo conheça e se enterneça consigo e com o nosso tempo. ó colega silva, um dom desses é uma obrigação, faz de si um cidadão obrigado a um contributo muito especial.
Hugo Mãe, na voz não só de António mas de outros personagens que ganharam vida em sua escrita, é o discípulo perfeito desse conselho do Silva da Europa. Sua obra é o mais claro exemplo de literatura como contribuição social, pela facilidade que tem em nos colocar no lugar do outro. Hugo Mãe é, sem dúvida, “uma voz amiga de toda a gente”.
ps.: Quem ficou muito curioso para a próxima leitura? O final do capítulo 14 trouxe um pouco de ação e uma virada surpreendente à narrativa. Os delírios de António, com os pássaros bicando seu corpo, atacam novamente sua mente e o levam a uma atitude extrema contra dona Marta. O que terá acontecido?
Achados & Lidos
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15 de novembro de 2016 at 18:08
Foi uma excelente escolha pro Clube. De todos os livros do Valter Hugo Mãe que tive o privilégio de ler esse foi o que mais me marcou. Como vocês disseram, essa maneira com que ele mistura temas universais sem transformá-los em clichês é sensacional e também creio que tem tudo para virar um clássico dessa nossa geração. A maneira com que ele fala do Salazarismo é pra tirar o chapéu.
18 de novembro de 2016 at 18:13
Estamos gostando muito também, Ana! Este está sendo o livro mais fácil para escrever os posts do Clube. Não faltam interpretações, reflexões e discussões. Em poucas páginas, VHM consegue nos deixar pensando por horas.
E a escrita dele sobre o salazarismo são ensaios em forma de prosa poética! É literatura de muita qualidade.