A união é a urgência dos nossos tempos. Essa ideia, tão simples quanto necessária, ganha vida nas criaturas e terras mágicas do belo romance A Vida dos Elfos, da autora francesa Muriel Barbery.
Depois do sucesso mundial de A Elegância do Ouriço, Barbery deixa o realismo e se arrisca na literatura fantástica, sem perder o requinte e a profundidade que já são marcas da sua escrita.
Na trama, duas jovens órfãs, Clara e Maria, têm uma ligação misteriosa que se esclarece à medida que são desvendados os segredos em torno das origens de cada uma.
Maria vive em uma região rural da Borgonha e é cercada por pessoas de pouca instrução, mas que têm a sabedoria que apenas a pureza do contato diário com a natureza pode prover. A comunidade acolheu a menina ainda bebê, quando ela foi abandonada nas redondezas, em um dia de muita neve. Desde a chegada de Maria, a região não conhece a escassez da terra. Os pomares e a caça se mantêm abundantes durante as quatro estações do ano. A relação simbiótica de Maria com a natureza é uma das chaves da narrativa:
Compreendera muito cedo que os outros se moviam no campo como cegos e surdos para quem as sinfonias que ela ouvia e os quadros que contemplava não passavam de ruídos da natureza e paisagens mudas.
Longe dali, em uma aldeia nas montanhas da Itália, vive Clara. Ela não teve a mesma sorte de ser adotada por pessoas de notável sensibilidade como a família e os amigos de Maria, mas isso não impediu que seu dom para as artes, especialmente para a música, aflorasse de maneira surpreendente. Ao piano, Clara era capaz de contar histórias e ouvir relatos:
Não conheciam nenhum adulto que soubesse tocar assim aquele prelúdio, porque aquela criança tocava com uma tristeza e uma dor de criança mas uma lentidão e uma perfeição de homem maduro, quando ninguém, entre os adultos, conseguia mais alcançar o encantamento do que é jovem e velho ao mesmo tempo.
A habilidade incomum da garota chama a atenção de Alessandro, irmão do padre que a adotou. A história começa, então, a se desenrolar. O clima de suspense torna a leitura frenética. A narrativa se alterna entre o mundo de Maria e de Clara. Com naturalidade, são apresentadas as criaturas mágicas que irão ajudar as jovens a decifrar suas origens, descobrir seus poderes e fortalecer o elo que as une – essencial à preparação para guerra que se aproxima.
Além da natureza e da arte, a força das histórias é a outra chave desse romance. Quando Clara está ao piano ou quando Maria enxerga através das brumas, mais do que músicas e visões, as jovens contam histórias. Há também um personagem do universo dos elfos, Petrus, que carrega o dom do relato. Durante toda a leitura, Barbery insiste na importância das histórias como fonte de encantamento e sabedoria – duas raridades no mundo moderno.
A maneira como a escritora conduz a descoberta desse mundo mágico é um dos aspectos que destaca A Vida dos Elfos diante de outras produções do mesmo gênero. Barbery não subestima o choque diante do sobrenatural e aproveita esse processo humano de aceitação para iniciar uma ótima discussão sobre os embates entre religião, fé e razão.
Um dos personagens mais interessantes do livro é o padre François, que ministra na granja em que Maria cresceu. Ele personifica a impossibilidade de interpretar o mundo pela religião. A conclusão dessa reflexão é a base da ideia central do romance:
A verdadeira fé, sabe-se, preocupa-se pouco com capelas, ela crê na colusão dos mistérios e esmaga com seu cândido sincretismo as tentações sectárias demais.
A crítica à guerra e à divisão do mundo é clara na escrita de Barbery. Evitar a desunião é a grande missão de Clara e Maria. Nesse caminho, elas irão resgatar a beleza da arte e da natureza, duas órfãs do imediatismo contemporâneo. O amor é o elemento que completa a trajetória das heroínas. Não há caminho para a harmonia que não passe por ele:
No fundo, o que é curar, senão fazer a paz? E o que é viver, se não for para amar?
A literatura fantástica não está entre meus gêneros preferidos, pois tenho dificuldade de me envolver com a trama. Se o mundo mágico é uma metáfora muito óbvia do mundo real, fico entediada. Quando está muito distante, me disperso facilmente.
Em A Vida dos Elfos, Barbery alcança um equilíbrio admirável, pois, ao mesmo tempo em que nos faz caminhar entre criaturas fantásticas, sutilmente não nos deixa esquecer que toda história tem um quê de realidade. O trecho que melhor resume o romance aparece logo no final da introdução:
Como veem, é um conto, obviamente, mas também é verdade. Quem é capaz de destrinchar essas coisas?
Afinal, para que dividir? O melhor caminho é sempre unir.
ps.: Nem todos os mistérios que cercam as duas jovens são resolvidos até o final do livro, pois A Vida dos Elfos terá sequência em um segundo volume. Só nos resta torcer para que seu lançamento não demore muito!
Mariane Domingos
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15 de dezembro de 2019 at 01:26
Resenha sensível e pontual. Não conhecia a autora e tampouco sua obra, mas surgiu enorme interesse. Meu único temor é que sua narrativa seja densa e pouco fluída deixando a leitura lenta. Mas vou procurar este livro. Linda resenha.
10 de maio de 2020 at 23:46
Olá, Fábio! Desculpe-me a demora em responder. Estivemos ausentes do blog, mas planejamos retomar aos poucos. Os romances de Barbery são bastante profundos e estimulam a reflexão, mas a leitura flui super bem. Eu sou uma grande fã. No entanto, A Vida dos Elfos não é meu favorito dela. Eu recomendaria, para começar, A Elegância do Ouriço ou A Morte do Gourmet (falo um pouco dele aqui). Depois, conte-nos o que achou! 🙂