Estamos apreensivas: o que terá acontecido no Lar da Feliz Idade? Depois de testemunhar o sofrimento do amigo Esteves e remexer em algumas memórias, António é surpreendido por uma notícia horrorosa, que descobriremos na leitura da próxima semana de A Máquina de Fazer Espanhóis, de Valter Hugo Mãe. Avançamos mais dois capítulos – até a página 175, se você tem a edição da Biblioteca Azul, ou até a página 161, se você tem a edição da Cosac Naify.
Por Mariane Domingos e Tainara Machado
Prestes a completar 100 anos, em vez de ganhar um presente, Esteves recebeu um castigo: a mudança de quarto. Perdeu o direito à vista esperançosa das crianças a esbanjar juventude e se viu obrigado a dividir o espaço com o senhor Medeiros, dono de um corpo inerte, não fosse pelo olhar e pelos gemidos inquietantes.
o esteves dizia que já muito tempo havia passado, e que aquilo era um desrespeito pelo seu centésimo aniversário. uma data tão bonita, uma vitória tão grande do seu espírito sobre a vida, e o feliz idade fazia-lhe aquela desfeita, metendo-o à varanda do cemitério para se convencer a desistir mais depressa.
Não é a primeira vez que percebemos no romance a ideia da vida como uma luta constante. O verbo “desistir” nesse contexto vem bem a calhar. Viver é um ato de bravura, mais ainda quando a velhice já é um fato, como no caso do amigo centenário de António.
A figura de Medeiros antagoniza a vitalidade de Esteves. Valter Hugo Mãe explora, nesse novo personagem, a vulnerabilidade da existência diante da fragilidade do corpo. Na voz de Esteves, lemos mais uma das verdades que fazem deste romance uma leitura valorosa:
isto é a violência da terceira idade. sabem por quê, porque o nosso inimigo é o corpo. porque o corpo é que nos ataca. estamos finalmente perante o mais terrível dos animais, o nosso próprio bicho, o bicho que somos. que decide que é chegado o momento de começar a desligar-nos os sentidos e decide como e quando devemos padecer de que tipo de dor ou loucura. pois eu que tenho cem anos e podia quase ser vosso pai quero dizer-vos que ser-se velho é viver contra o corpo. o estupor do bicho que nós somos e que já não nos suporta mais. a violência na terceira idade.
A maneira como Hugo Mãe descreve a vida que resiste dentro do corpo moribundo de Medeiros é marcante. O escritor português parece ter o dom de significar sentimentos avessos às palavras. Neste trecho, em que Esteves chega assustado ao quarto de António dizendo não suportar mais o olhar e os gemidos aflitos do colega de quarto, temos uma definição primorosa do que é a agonia:
o pior é nessa altura quando ele geme um pouco. geme muito baixinho, como se o corpo dele fosse um poço profundo e ele estivesse longínquo a tentar chegar cá acima. subitamente suspira. um suspiro muito fraco, muito triste, e deve ser como se sente respirar subido dessa profundeza. parece que está agarrado por dentro do corpo para não cair.
Já perdemos a conta de quantos trechos como esse marcamos ao longo do livro. É como se tivéssemos em mãos um dicionário poético, muito mais preciso que os tradicionais que conhecemos. Ler a obra de Hugo Mãe é perceber que as palavras ganham vida a partir da experiência humana.
“Agonia”, por exemplo, aparece no dicionário como “estado de aflição que antecede a morte”. “Luto”, como “sentimento de pesar ou tristeza pela morte de alguém”. “Angústia” é “carência, falta”. No romance de Hugo Mãe, agonia é Medeiros. Luto é a velhice de António. E angústia é o Lar da Feliz Idade. O escritor português nos faz sentir através do outro e essa é a grande força do seu texto e dos seus personagens.
E não é apenas a realidade atual de António que nos estimula à reflexão. Nessa última leitura, tivemos mais algumas recordações do narrador, agora claramente relacionadas ao período da ditadura salazarista.
António, por causa da família e das preocupações de Laura, tentava se manter à margem dos acontecimentos políticos de Portugal. A vida, no entanto, às vezes nos mete nos acontecimentos, mesmo que contra nossa vontade. O narrador relembra então um fim de tarde de 1967, quando, prestes a fechar as portas da barbearia, entrou um homem assustado no recinto.
podia ter pensado que me assaltaria, que me mataria, que era dos maus. se uns seriam bons, outros teriam de ser maus, era tão linear o pensamento vendido aos portugueses. (…) eu podia ter reagido de muitas maneiras. podia tê-lo escorraçado, poderia ter gritado que me acudissem num susto daqueles, podia ter-lhe perguntado ao que vinha.
Mas António não fez nenhuma dessas coisas. Ao contrário, apontou ao homem o compartimento interior da barbearia, onde guardava vassouras e outras tralhas, e quando um policial da pide, a polícia política do regime salazarista, assomou à porta, António reuniu coragem suficiente para fechar o estabelecimento e dizer que não havia visto ninguém por ali. Amargou uma noite inteira de ansiedade sobre o fugitivo que havia deixado para trás. Ele pensava:
dentro da minha barbearia, zelando pela sua mas agora também pela minha sorte, ficara o homem em fuga. um homem muito mais jovem do que eu que, ao contrário de ter se habituado à ditadura, andava a miná-la como sabia, criando brechas aqui e acolá para que ao menos se soubesse que o povo gangrenava descontente.
O raciocínio que António faz a seguir, sobre o comportamento semelhante ao de um rebanho que a maioria dos portugueses adotava em relação a Salazar, é interessante porque continua extremamente válido. Na tentativa de resguardar os mais próximos e evitar riscos, muitos deixamos que a sociedade apodreça “sob aquele tecido de famílias de bem”, por acreditar que a resistência seria infrutífera ou penosa. É mais fácil agir em consonância com o poder do que lhe resistir, e era daí que Salazar tirava sua força: do apoio que a classe média, mesmo que passando necessidades, ainda lhe dava em nome da “ordem e do progresso”, essas duas palavras ainda tão presentes no vocabulário atual.
Ao se desprender dessas amarras ao menos uma vez na vida, António se sente triunfar, de certo modo:
eu ajudava o diabo, claro que estava aterrado. mas, ao menos uma vez, ao menos ali, pudesse eu estar para além da merda de homem amorfo que fora e superar minhas expectativas. levar um pouco adiante um orgulho de ser mais do que português, ser pelos portugueses, ser pelas pessoas, por todas as pessoas que tinham naturalmente todas as maneiras de pensar e só assim devia ser.
António e o estudante fugitivo estabeleceram uma espécie de amizade nos anos seguintes, sempre em encontros nos quais o barbeiro fazia seu trabalho enquanto o jovem lhe falava da queda do regime e da necessidade de sujar o nome de Salazar, de transformar seu significado em merda para que não houvesse a possibilidade de esquecimento do que aquele homem representou para a história de Portugal:
é preciso que o futuro lhe reserve sempre a merda para seu significado, para que os povos se recordem como foi que um dia um só homem quis ser dono das liberdades humanas, para que nunca mais volte a acontecer que alguém se suponha pai de tanta gente. este tem de ser um nome de vergonha. o nome de um porco.
A resistência, em A Máquina de Fazer Espanhóis, representa a capacidade humana de lutar contra o esquecimento. Seja no caso de Esteves, que enfrenta a morte; no caso do jovem fugitivo, que enfrenta a ditadura; ou no de António, que enfrenta o luto. Em todos os casos, sabe-se que o passado guarda parte da nossa experiência, identidade e, principalmente, de nossos erros. Pena que, com frequência, esqueçamos de olhar para trás.
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