Daniel Galera se tornou uma espécie de “fenômeno literário” brasileiro com Barba Ensopada de Sangue, lançado em 2012. Seu novo romance era aguardado, portanto, com uma expectativa enorme. Meia-Noite e Vinte confirma o autor como o expoente maior de uma safra de ótimos escritores como há muito não se via na cena literária brasileira.
O ponto de partida de Meia-Noite e Vinte é justamente a morte de uma espécie de alter ego de Galera, Andrei Dukelsky, descrito como “um dos maiores novos talentos da literatura brasileira contemporânea”. Mais conhecido pelo apelido, Duque foi morto de forma brutal, ao ter seu celular levado durante uma corrida pelas ruas de Porto Alegre.
A tragédia, que chega a Aurora por meio do Twitter, força a aproximação dela com os outros dois narradores do livro, Antero e Emiliano. Juntos, os quatro haviam escrito, na virada do milênio, um cultuado fanzine digital, chamado Orangotango.
O enredo é simples. Trata-se, essencialmente, do reencontro dos três amigos após a morte de Duque, o que os força a voltar a habitar o passado e, sobretudo, entender como chegaram ao presente e qual o futuro possível nas circunstâncias em que se encontram. O domínio de Galera sobre a narrativa, porém, faz com que esse seja um romance de portas abertas.
Cada personagem parece estar afundado em situações-limite. Aurora, uma pesquisadora da área de botânica razoavelmente bem sucedida, é ameaçada de não ser aprovada em sua qualificação de doutorado na Universidade de São Paulo por um professor abusivo. Seu choque com a morte de Duque a encontra em uma Porta Alegre caótica, com ares dignos de Saramago, o que exacerba seu pessimismo com a humanidade.
A fragilidade do homem era tocante. Milhões de anos de evolução desembocando em seres incrivelmente não adaptados ao ambiente do planeta, como demonstrava nosso sofrimento diante de mínimas alterações de temperatura ou falta de substâncias, uma vulnerabilidade humilhante a todo tipo de condição atmosférica, exposição a materiais e outros organismos, para não falar na ainda mais humilhante vulnerabilidade da nossa mente a qualquer baboseira, à ansiedade, à esperança. Éramos inadequados àquela natureza. Não espantava que desejássemos destruí-la.
Em um estado semi-depressivo, vivenciando apenas relações online, Aurora começa a questionar também os limites da ciência – e, automaticamente, de seu papel no mundo. Sua pesquisa sobre a percepção da passagem de tempo pelas plantas, que ao fim poderia até acelerar a produção de alimentos, começa a lhe parecer um problema em si. A terra, na sua avaliação, chegou a um ponto em que mais capacidade de vida significa fim mais próximo:
O ser humano não seria o primeiro organismo a ensejar o próprio genocídio por excesso de vantagem evolutiva, nem nisso éramos especiais.
Antero, um autocentrado diretor de uma agência de publicidade famosa, parece ainda preso em seus experimentos na adolescência, quando escrevia de forma transgressora para o Orangotango. Seu discurso vazio em um TEDx sobre a mídia e a produção de conteúdo capaz de conquistar massas de consumidores é, de certa forma, um reflexo irônico da tentativa de intelectualizar esse meio, disfarçando seu objetivo principal: vender.
Encarregado de escrever a biografia de Duque, Emiliano é um jornalista solicitado, mas que vive uma vida de certa forma decadente, desregrada, sem quaisquer amarras sentimentais.
Por todo o romance, está latente uma sensação de mal estar com a modernidade, uma percepção muito forte de que algo saiu fora do eixo no mundo. Ao dialogar com as manifestações de junho de 2013, um movimento ainda em digestão pela sociedade brasileira, Meia-Noite e Vinte escancara o mau humor que parece ter dominado as relações sociais desde então, uma espécie de azedume que advém de sonhos dilacerados.
Antero relembra a passagem de 1999 para 2000, quando havia a expectativa de um bug nos computadores que causaria panes globais, e que não deu em nada.
Quinze anos depois, o que começava a espalhar seus tentáculos pela sensibilidade de gente adulta e esclarecida como Aurora era outra coisa, uma angústia diferente da tensão pré-milênio. A nova angústia era essa expectativa difusa de um sufocamento vagaroso e irreversível, após o qual não restaria nada.
O estado de espírito dos personagens é algo como uma ressaca moral da década anterior, que se iniciou com as possibilidades abertas pela internet e por um pais que também parecia ter saído do limbo social e econômico. De repente, essa geração parece ter caído na real de que ainda estamos presos a um país capaz de retroceder décadas em um par de anos. Em um mundo que pouco faz para amenizar esse sentimento de fim iminente.
Há também uma forte tensão sexual entre os personagens, uma espécie de desejo latente que pode rapidamente caminhar para o mundo das possibilidades materiais. Uma espécie de espelho para o passado, que pode lhes permitir ser mais honestos com eles mesmos do que hoje, quando já se tornaram maduros o suficiente para construir defesas contra os instintos.
É esse sentimento que faz com que Emiliano não consiga recusar a proposta de escrever a biografia do amigo morto. Duque era avesso a redes sociais, mas depois de sua morte, descobre-se que tinha uma vasta presença online. Sua vida online lhe sobreviveria, e deixaria inclusive algumas respostas sobre o ar misterioso que envolve sua morte.
O leitor, porém, encontrará poucos respostas para seus questionamentos. Meia-Noite e Vinte é um livro conciso, mas que ao mesmo tempo pincela uma gama vasta de assuntos. Com esse livro, Galera também se aproxima de um autor que é sua referência assumida, David Foster Wallace, e seu realismo misturado com fluxo de consciência. Como não poderia deixar de ser, já estamos esperando o próximo livro de Daniel Galera. .
Tainara Machado
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