A relação da literatura com a realidade foi o tema da palestra de Ian McEwan no Fronteiras do Pensamento, na última quarta-feira, em São Paulo. O escritor britânico, autor de obras de sucesso, como Reparação e Solar, afirmou que o encontro entre esses dois mundos é inevitável:
Todos os romancistas que escrevem ficção estão lidando com a realidade em que vivemos.
McEwan divertiu a plateia com uma série de anedotas sobre mensagens que recebeu de leitores apontando deslizes na acurácia de sua narrativa. A constelação que nunca poderia estar ali, naquele lugar onde a cena se desenrola, àquela época do ano. A troca de marcha do carro que jamais aconteceria, porque aquela linha da Mercedes só trabalha com transmissão automática. O pincel, que em um procedimento cirúrgico real, seria uma esponja. Detalhes não passam despercebidos por quem é especialista no assunto ou apenas atencioso. O leitor sente a necessidade de se identificar com aquilo que lê e o realismo tem um papel fundamental nesse processo.
Em vez de reagir negativamente aos apontamentos, McEwan acolheu todas as sugestões e corrigiu as edições seguintes dos seus livros. Segundo ele, esse tipo de contato tem que ser valorizado, porque é a forma mais moderna de engajamento do leitor. Qualquer escritor tem que estar aberto a essas manifestações, pois, como bem definiu McEwan:
Somos criaturas visuais, e a chave para uma cena real, impactante, é conseguir os detalhes visuais certos.
Mesmo nas obras que extrapolam consideravelmente os limites do real, em um momento ou outro, enxergamos o cuidado com o realismo. O exemplo que McEwan citou foi A Metamorfose, de Franz Kafka. Logo no início do romance, o personagem Gregor Samsa acorda de sonhos perturbadores transformado em um inseto gigante. Passado esse primeiro choque de fantasia, o que vemos é uma pincelada de realidade. A primeira preocupação de Gregor, quando ele viu as suas pernas de inseto balançando no ar, foi que sua nova forma iria atrasá-lo para o trabalho, porque ele não conseguia virar de barriga para baixo e levantar-se da cama.
Essa análise de McEwan me fez pensar sobre meu comportamento como leitora. Eu gosto muito de livros que saem do óbvio, mas sempre me apego aos pontos da narrativa que conversam com a realidade.
Um bom exemplo é o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas. Quer fantasia maior do que um defunto-autor? A genialidade de Machado de Assis na concepção de um narrador tão peculiar só é superada pela sua habilidade em construir um personagem que é um belo representante da complexidade humana. A condição de Brás Cubas é irreal – não tem como um morto ser um narrador –, mas a sua personalidade, seu humor ácido e sua ironia estão colados com a realidade da condição humana. Esse, para mim, é o grande trunfo da obra de Machado que, não por acaso, faz parte do movimento realista.
O novo romance de McEwan, lançado em outubro no Brasil, parece integrar esse seleto grupo de obras que exploram, com sucesso, a diversidade do realismo. Enclausurado é um livro que parte de uma impossibilidade física e biológica: o narrador é um feto que opina sobre o mundo e a sua ansiedade, enquanto testemunha os planos da mãe e do amante para o assassinato de seu pai. Na palestra do Fronteiras do Pensamento em Porto Alegre, realizada também na última semana, McEwan explicou:
Eu vejo este livro como um romance que segue a tradição do realismo, porque, uma vez que esta primeira premissa é aceita, todo o resto que eu faço, neste romance, está no universo de um mundo compartilhado que eu acho plausível.
McEwan é um grande adepto das pesquisas para o desenvolvimento das suas obras. Quando estava escrevendo Sábado, livro cujo personagem principal é um neurocirurgião, o autor britânico passou dois anos acompanhando um médico neurologista, participando da rotina de trabalho a partir das seis da manhã, assistindo a cirurgias e procedimentos. Nas anedotas que citei no começo deste texto, ele observou que todo esse esforço não o impediu de cometer um erro na descrição de uma cirurgia, em que confundiu o uso de uma esponja com um pincel. McEwan ainda brincou:
Na minha memória, eu vi um pincel! Naquela cena, eu precisava de um pincel e não de uma esponja, pois eu enxergava o personagem como um Van Gogh pintando algumas flores.
A escrita, como bem definiu McEwan é a capacidade de transferir “os pensamentos do seu cérebro para outro cérebro”. Dessa forma, dificilmente encontraremos uma literatura que seja a expressão exata da realidade, já que o que temos em nossas mentes são fatos já processados pelos nossos filtros. O realismo, segundo o britânico, é uma tentativa de conectar aquilo que os outros reconhecem.
McEwan provavelmente concordaria com o poeta brasileiro Manoel de Barros, autor desta frase que está no poema Autorretrato:
Tenho uma confissão: noventa por cento do que escrevo é invenção; só dez por cento que é mentira.
Afinal, quem se atreve a negar que a realidade não passa de uma invenção?
ps.: Depois de falar tanto de realidade e identificação, acho importante destacar um momento da palestra em que me senti mais próxima de McEwan, pois percebi que compartilhamos um mundo em comum. Quando questionado sobre o que conhecia de literatura brasileira, o escritor britânico contou que estava lendo Barba Ensopada de Sangue, de Daniel Galera, e que estava impressionado pela qualidade de sua escrita. <3 Essa realidade, Mr. McEwan, é inquestionável, (pelo menos por aqui, no Achados & Lidos, rs)!
Mariane Domingos
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