[A Máquina de Fazer Espanhóis] Semana #5
Nesta última leitura, conhecemos um pouco o passado de António e as experiências que formaram, ao longo de mais de oito décadas de vida, a personalidade que vemos aflorar no Lar da Feliz Idade. Para a próxima semana, avançamos mais dois capítulos na leitura de A Máquina de Fazer Espanhóis, de Valter Hugo Mãe – até a página 131, se você tem a edição da Biblioteca Azul, ou até a página 118, se você tem a edição da Cosac Naify.
Por Mariane Domingos e Tainara Machado
A ditadura de António Salazar, que governou Portugal por mais de 40 anos, chegou ao romance A Máquina de Fazer Espanhóis. As memórias de António reconstroem esse período obscuro da nação portuguesa.
O narrador relembra a época de seu matrimônio com Laura. A ingenuidade do casal é, aos poucos, minada por uma realidade que em nada parecia com a propaganda de progresso distribuída pelo governo. O espírito de solidariedade em prol do coletivo era apenas um eufemismo para incentivar a resignação dos menos favorecidos. Um povo quieto era, então, mais conveniente:
havia uma decência, com um tanto de massacre, sem dúvida. Mas uma decência que criava um porreirismo fiável que incutia em todos um respeito inegável pelo colectivo, porque estávamos comprometidos em sociedade, por todos os lados cercados pela ideia de sacrifício, pela crença de que o sacrifício nos levaria à candura e de que a pureza era possível.
António, a princípio, não acreditava que as diretrizes políticas afetassem seu dia a dia. No entanto, começa a sentir em sua vida adulta, ao lado de Laura, os efeitos da miséria de oportunidades em uma sociedade desigual. A lembrança da perda do primeiro filho, por falta de recursos, é marcante:
não foi culpa do padre, nem da igreja e nem de deus. foi só o triste acaso de sermos miseráveis num país de miséria que não esperava de nós mais do que o brio e o sacrifício mudo. havíamos sacrificado nosso filho, e saído com duas moedas no bolso que pagariam quatro ou cinco sopas e nos deixariam para o resto do mês à deriva da sorte.
Depois da perda do primogênito, a apatia política de António é chacoalhada. Seus planos de emigrar para França revelam uma nação encurralada por um regime autoritário que pregava a resignação. Neste momento, Hugo Mãe faz o retrato de uma geração de portugueses que foi obrigada a nascer longe de sua pátria:
podias ser francesa, elisa, podias ter sido francesa, embora nos dê um orgulho tão grande a resistência que te permitiu ser portuguesa e, assim, herdar portugal. portugal é teu, minha filha, é teu, mesmo assim difícil de compreender. (…) não queríamos ser franceses, queríamos que os portugueses fossem mais felizes. isso é que era e que se fodessem os espanhóis e o general franco que era uma merda como a que aturávamos nós.
As memórias de António reverberam uma opinião do escritor Valter Hugo Mãe. Em visita recente ao Brasil, como convidado do Fronteiras do Pensamento, ele falou sobre o salazarismo. Segundo ele, a violência física desse período, embora tenha existido, não foi preponderante se comparada a de outros regimes totalitários e sanguinolentos ao redor do mundo. No entanto, a agressão causada foi igualmente grave: incutiu-se no povo português o sentimento de inferioridade e incapacidade. Em sua palestra, Hugo Mãe afirmou:
É frequente encontrarmos quem diga “não temos direito”, “não estamos à altura de nos compararmos com povos estrangeiros”. Isso é uma porcaria. É o que no Brasil chamam de complexo de vira-lata. Durante a ditadura de Salazar, o português foi amansado até acreditar que era o vira-lata europeu.
O personagem Silva da Europa, que António conheceu logo no primeiro capítulo, no hospital, e reencontra no asilo, é a personificação dessa ideia. Sua necessidade constante de se reafirmar europeu e se mostrar à altura da Europa revela a fragilidade de uma autoestima desgastada por anos de autoritarismo. A presença de Salazar cultivou nos portugueses a noção de que eles eram incapazes de pensar sozinhos. O governo estava lá para fazer isso por eles e liderá-los por um caminho vitorioso e superior aos traçados pelos países democráticos.
António sintetiza brilhantemente essa visão na anedota sobre o jogador de futebol Eusébio, ídolo do clube Benfica, arquirrival do Porto. A propaganda do governo em cima da supremacia portuguesa se aproveitava da imagem de figuras bem-sucedidas como Eusébio. A lavagem cerebral era tamanha que até mesmo os portistas se viam torcendo pelo Benfica:
e para um portista dizer tal coisa significava que era realmente incrível e que o regime se nos metia pela pele adentro como um vírus. ficávamos sem reação, íamos pela vida abaixo como carneirada, tão bem enganados.
Ao mesmo tempo em que cria uma consciência política, à medida que o regime salazarista avança, António se distancia da religião. Ele lembra que ele e Laura chegaram a se casar conforme mandava a igreja, mas a perda do primeiro filho, com o risco que a perda do bebê impôs à vida de Laura, logo o faz reconsiderar essa aproximação.
aprendi tudo ao contrário depois. ser religioso é desenvolver uma mariquice no espírito. um medo pelo que não se vê, como ter medo do escuro porque o bicho-papão pode estar à espreita para nos puxar os cabelos.
Está entendida, portanto, a implicância com a figura da santa em seu quarto e a imposição do reencontro com a religião na velhice. Além das memórias que levam às opiniões de António sobre política e religião, nessa última leitura, conhecemos um novo morador do Lar da Feliz Idade:
na porta, quando entrava do pátio para o salão, esbarrei com um indivíduo de olhos grandes e cheio de luz.
Como de início sempre carrancudo, António mal cumprimenta Anísio Franco e segue para o seu quarto. O novo personagem, porém, será marcante para o viúvo, principalmente por seu otimismo com o futuro e sua capacidade de fazer projetos para adiante, duas capacidades das quais António decidiu se desfazer assim que ingressou no lar.
e eu pasmava diante dele porque não concebia o que era chegar àquela idade e ter projectos. o meu projecto era esquecer tudo, era protestar contra a morte da laura convencendo-me de que, depois da morte de alguém que nos é essencial, ao menos a memória do amor deveria ser erradicada também.
As opiniões sobre o regime salazarista não as únicas exposições de Valter Hugo Mãe no romance. Os demais hóspedes do Lar da Feliz Idade muitas vezes representam também a relação do autor com a literatura. Em meio a uma discussão sobre a vida passada de António, no qual ele enfim nos revela sua profissão de barbeiro, Silva da Europa lhe provoca e diz que ele também tinha alma de poeta. Nosso carrancudo personagem não gosta muito da comparação:
porra, não tenho pela poesia mais do que um respeito devido, protestava eu, não quer dizer que seja poeta ou que o tenha querido ser.
Por meio de Esteves sem metafísica, o hóspede do lar que inspirou Fernando Pessoa, Valter Hugo Mãe também faz certa crítica à racionalização excessiva da literatura pelos estudiosos. O personagem nos mostra que as inspirações para a alta poesia podem ser muito mais banais do que imaginamos. E quem dá voz a esse raciocínio é Anísio Franco:
e o anísio ria-se e dizia, tem razão, escrevem para aí umas porcarias e a gente fica séculos a vaticinar por especulação.
As metáforas e as mensagens presentes na literatura, parece nos querer fazer entender Hugo Mãe, podem ser lidas e interpretadas por cada um de uma forma diferente. Podem até mesmo ter um significado puramente mundano. O importante é o impacto que nos causam, ao reduzir “a condição pequenina do quotidiano e das rotinas”, como bem define António.
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