Embora ainda dominado pela tristeza do luto, António começa a ver, aqui e ali, algum sinal de graça na vida. Nos últimos dois capítulos, também começamos a acompanhar uma investigação que pode resultar em eventos macabros no Lar da Feliz Idade. Continua tão curioso quanto a gente com o desfecho de A Máquina de Fazer Espanhóis, de Valter Hugo Mãe? Então nos acompanhe pelos próximos dois capítulos – até a página 111, se você tem a edição da Biblioteca Azul, ou até a página 97, se você tem a edição da Cosac Naify.

Por Mariane Domingos e Tainara Machado

Ainda no quarto capítulo de A Máquina de Fazer Espanhóis, conhecemos Esteves sem metafísica. Sua história extraordinária – ele teria inspirado o famoso poema de Fernando Pessoa – acende a primeira fagulha de entusiasmo em António desde que ele chegou ao lar de idosos depois de ficar viúvo.

sorri verdadeiramente como nunca até ali naquele lar.

A história é contada por Pereira, o mais próximo que António chega a ter de um amigo dentro do asilo, e confirmada pelo próprio Esteves, com ares de que aquele acontecimento há mais de meio século no passado o enfastia, depois de repeti-lo mil vezes. Mesmo assim, a possibilidade de que o “maravilhoso genial lindo” Fernando Pessoa agora faça parte, mesmo que pela tangente, de sua rotina encanta António.

A mensagem de Valter Hugo Mãe é clara e límpida. A literatura, sempre ela, tem o poder de nos despertar, de nos deslocar do agora e nos fazer sonhar. António, convicto de que apenas caminhava para se encontrar com Laura em outro mundo, de repente descobre que ainda pode ser surpreendido.  

era uma novidade que, sobretudo no meu estado para morto, continha uma energia de vida radical e inesperada.

Só ficaremos sabendo um pouco mais sobre esse personagem inusitado no sexto capítulo. De família pobre, Esteves trabalhava na loja do tio, que havia conseguido de certa maneira superar as dificuldades e estabelecer um comércio na capital. A boa figura de Esteves logo foi notada em uma tabacaria, por onde passava todas as manhãs para comprar o jornal. De modos elegantes, bem vestido e de chapéu, Fernando Pessoa ficava sempre a um canto a observar os transeuntes. A “beleza de nobre a passar a fome dos miseráveis” que caracterizava Esteves não passou despercebida pelo poeta.  

A história inusitada de Esteves faz com que António pense em metafísica e transcendência e, por conseguinte, em Laura. As oscilações entre a profunda tristeza pela morte da mulher e os primeiros sinais de bom humor com os novos amigos do lar passam a marcar o ritmo da história.

Em alguns momentos, a casmurrice de António será vencida por travessuras típicas de moleques de dez ou quinze anos, uma válvula de escape que permite que ele desafogue um pouco da raiva que guarda dentro de si. Primeiro, ele e Pereira colam um papel na santa que fica no quarto de António, rebatizando Nossa Senhora de Fátima de Mariazinha, rodeada de pombinhas.

No episódio seguinte, mais uma vez a santa – uma estátua que personifica as muitas imposições a que António está submetido no lar – é o alvo: dessa vez, ele quebra suas pombinhas, uma transgressão que António considera o ponto alto de seus vinte e três dias no asilo. O atentado contra a santa representa a vitalidade que ainda não fora perdida:

gosto desta maldade, não podemos ficar velhos e vulneráveis a todas as coisas, temos de nos rebelar aqui e acolá, caramba, temos de estar a postos para alguma retaliação, algum combate, não vá o mundo pensar que não precisa de tomar cuidado com as nossas dores.

Pereira e António passam então a tarde se divertindo ao mostrar às senhoras do lar os destroços da santa e a lhes dizer: “vou comer-lhe a pombinha”. A história fica mais divertida quando Esteves se junta ao time e começam a importunar Dona Leopoldina, que comia pequenos chocolates metidos em uma caixinha. Incomodada com as estripulias dos velhos que a atormentavam, Leopoldina apenas se levanta, sai andando e, à vista de todos, coça a bunda, o que só aumenta o divertimento dos três.

éramos velhos tolos a trazer da tolice uma promessa de vida qualquer.

Também tivemos, nos últimos dois capítulos, uma novidade. Ao contrário dos demais trechos do livro, o quinto capítulo, no qual a narrativa se concentra na investigação sobre o incêndio que atingiu o lar e matou três internos na ala próxima ao cemitério (aquela mais próxima da morte), marca uma mudança: possui letras maiúsculas e minúsculas, sinais de pontuação, diálogos precisos, nomes e sobrenomes.

A inversão de estilo, porém, não faz com que Hugo Mãe perca a ironia que marca sua narrativa sobre a velhice. Mais uma vez, vemos escancarados pelo autor os preconceitos com que tratamos os idosos.

Os investigadores desprezam o testemunho dos moradores do lar como se a velhice fosse garantia de perda das faculdades mentais. Sabemos, contudo, que há algo suspeito no incêndio, o segundo episódio do tipo em poucos anos. Os internos são recolhidos aos seus quartos, se exige silêncio, mas António consegue ao menos tempo para dar uma pista aos investigadores:

“Não havia lugar para mais velhos. Percebe? Não havia lugar para mais ninguém.”

Ele é rapidamente interrompido por Américo Setembro, um dos funcionários, mas acredita que os policiais serão capazes de compreender sua pista. Sabemos, no entanto, que investidos da cegueira da autoridade, dificilmente os investigadores vão levar a sério um senhor com aspecto já meio maluco.

Entre um episódio e outro, António começa a despertar para a vida, mesmo que ela só tenha a graça dos pequenos acontecimentos de pouca importância do lar. Ele ainda não consegue, contudo, deixar de lado seu luto. Suas risadas sobre o episódio com dona Leopoldina logo se transformam em choro pelo misto de culpa e remorso que o envolvem no aprendizado do que é viver sem Laura. A Américo, o enfermeiro que é uma espécie de confidente, ele fala da vontade de morrer, que lhe parece um pouco mais distante nos últimos dias.

E Américo nos dá uma bonita lição do que é luto, saudades e amor:

a lembrança da sua esposa vai trazer-lhe um sorriso aos lábios porque é isso que a saudade faz, constrói uma memória que nós nos orgulhamos de guardar, como um troféu de vida. um dia, senhor silva, a sua esposa vai ser uma memória que já não dói e que lhe traz apenas felicidade. a felicidade de ter partilhado consigo um amor incrível que não pode mais fazê-lo sofrer, apenas levá-lo à glória de o ter vivido, de o ter merecido.

É assim, entre altos e baixos, que António leva seus dias no Lar da Feliz Idade. Toda vez que ele tem um lampejo de conforto, logo lhe invade a sensação da passagem do tempo, da contagem regressiva que é a vida. O retrato do jogador Teofillo Cubillas, no quarto de Leopoldina, por exemplo, “era a prova gritante de que um dia todos eles haviam sido jovens, magros, ágeis e sobretudo esperançados num futuro melhor e, eventualmente, tinham estragado tudo”. A desenvoltura de Esteves para encarar com otimismo seus quase 100 anos, “nada atento aos perigos de ter tanta idade”, também era um lembrete da ilusão da eternidade.  

A situação de António se resume bem em uma conclusão a que ele próprio chega quando Américo o confronta sobre as traquinagens contra a santa. Para ele, não havia nenhuma heresia em seu ato, porque aquela era apenas uma estátua. Sua justificativa é:

vivemos num mundo que despreza as provas e prefere gerir-se pela especulação.

Ao que parece, desde a perda de Laura, António não consegue mais, exceto por raros momentos, se encontrar no mundo da especulação. A convivência com a esposa era o que lhe garantia essa alienação vital à sobrevivência. No Lar da Feliz Idade, António afunda no mundo das provas e, sendo a realidade tão dura, não há espaço para risadas ou beleza, apenas para uma amarga espera.  

 

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