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Por Mariane Domingos e Tainara Machado
Em O Alienista, Machado de Assis desenvolve dois temas que lhe são muito caros: o comportamento humano e política.
O Dr. Simão Bacamarte, médico da cidade de Itaguaí, não deve nada a personagens de romances emblemáticos do escritor, como Brás Cubas e Bentinho. Sua capacidade de dizer nas entrelinhas de seus atos o torna uma figura essencial para a profundidade crítica deste conto.
Obcecado pela ciência, o doutor se lança a uma empresa cujo único fim era contribuir para a evolução do conhecimento humano. O estudo da mente fascina o ilustre cidadão itaguaiense. Ele consegue apoio do governo para abrir a Casa Verde, instituição que, sob seu comando, abrigaria todos os loucos da cidade.
O entusiasmo do povo com o sinal de modernidade que a empreitada simbolizava não dura muito. O Dr. Bacamarte começa a expandir de maneira incontrolável a abrangência de suas pesquisas.
Trata-se, pois, de uma experiência, mas uma experiência que vai mudar a face da Terra. A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente.
O alienista começa a internar pacientes cuja loucura não se notava, a exemplo de Costa, uma cidadão querido (e explorado) por sua generosidade. Depois de herdar uma importante soma, perdeu quase tudo emprestando dinheiro sem garantias de retorno. Tal comportamento, segundo o Dr. Bacamarte, não condizia com a normalidade.
Surgem boatos de que as intenções do alienista não eram as mais nobres, visto que ele contava com o apoio financeiro da Câmara para manter os doentes que não podiam pagar por sua estadia na Casa Verde. Não demora muito para que ele abdique dessa ajuda e mostre o total desinteresse econômico de sua atividade.
Aos poucos, a Casa Verde vai sendo povoada e desperta uma rebelião violenta no povo, liderada pelo barbeiro Porfírio. Inicialmente embuído do nobre desejo de libertar o povo de uma prática opressora, Porfírio logo é invadido pelos vícios do poder. A cada vitória que alcança, ele vê mais próxima a possibilidade de iniciar uma carreira política.
A revolução triunfante não perdeu um só minuto; recolheu os feridos às casas próximas e guiou para a câmara. Povo e tropa fraternizavam, davam vivas a el-rei, ao vice-rei, a Itaguaí, ao “ilustre Porfírio”. Este ia na frente, empunhando tão destramente a espada, como se ela fosse apenas uma navalha um pouco mais comprida. A vitória cingia-lhe a fronte de um nimbo misterioso. A dignidade de governo começava a enrijar-lhe os quadris.
Depois de dissolver a Câmara e tomar o controle da situação, Porfírio investe em um jogo duplo para assegurar seus próprios interesses. Todos esperavam que ele destituísse o alienista de seu posto e, assim, se mantivesse leal ao princípios da rebelião que o colocou no poder. Mas a política não é assim, nos mostra Machado de Assis. Porfírio propõe, secretamente, uma aliança com o Dr. Bacamarte. Ele não exigiria o fim definitivo da Casa Verde, apenas a libertação de alguns doentes para acalmar o povo, se o alienista usasse seu prestígio social para apoiar o novo governo.
A ambiguidade do barbeiro não passa despercebida. Dr. Bacamarte recusa o acordo e ainda encerra mais de 50 apoiadores do governo na Casa Verde e considera a naturalidade com que Porfírio esconde suas reais intenções um caso patológico.
A Câmara vê nessa reviravolta a chance de retomar o poder e se alia a um antigo desafeto do barbeiro, o colega de profissão João Pina. Sem pudores, ele vai até os documentos do governo, resgata a carta que Porfírio usou em seu golpe, troca os nomes e se declara o novo líder.
Nesse meio tempo, outro personagem se destaca: o boticário Crispim Soares. Sua antiga amizade com o alienista não sobrevive ao receio de estar do lado perdedor da disputa. Quando Porfírio assume o poder e o fim do Dr. Bacamarte é iminente, o boticário reflete:
A esposa, senhora máscula, amiga particular de D. Evarista, dizia que o lugar dele era ao lado de Simão Bacamarte; ao passo que o coração lhe bradava que não, que a causa do alienista estava perdida, e que ninguém, por ato próprio se amarra a um cadáver.
A cada reviravolta, os personagens vão mudando de posição, sempre buscando o lado mais vantajoso do momento. Depois de muito analisar, o Dr. Simão Bacamarte conclui que a loucura era muito mais comum que a sanidade, por isso o mais sensato seria internar na Casa Verde aqueles que apresentavam retidão de caráter.
Essa nova etapa do empreendimento científico do Dr. Bacamarte é um deleite para quem aprecia o uso que Machado de Assis faz da ironia em seus textos. A câmara autoriza que o alienista recolha na Casa Verde as pessoas “que se achassem no gozo do perfeito equilíbrio das faculdades mentais”, mas logo cria uma daquelas brechas que parecem irreais, se não fizessem tanta parte do nosso cotidiano até hoje.
O vereador Freitas propôs também a declaração de que, em nenhum caso, fossem os vereadores recolhidos ao asilo dos alienados: cláusula que foi aceita, votada e incluída na postura apesar das reclamações do vereador Galvão.
Galvão argumentara que, por se tratar de uma experiência científica, não se poderia excluir uma parte dos cidadãos das consequências da lei. Os vereadores não lhe deram ouvido, mas o Dr. Bacamarte, diante de tal expressão do bom senso, logo o encaminhou à Casa Verde.
Porém, não passa muito tempo e todos esses “doidos” caem em algum desvio e acabam “curados” de sua beleza moral. Afinal, de gênio e louco todo mundo tem um pouco. A única exceção é o Dr. Bacamarte, que se mantém honesto e fiel ao seu compromisso com a ciência. Não havia, então, outra solução senão ele próprio se internar na Casa Verde.
Isso é isto. Simão Bacamarte achou em si os característicos do perfeito equilíbrio mental e moral; pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a paciência, a perseverança, a tolerância, a veracidade, o vigor moral, a lealdade, todas as qualidades enfim que podem formar um acabado mentecapto.
O Alienista, um dos melhores contos do autor, aborda os jogos políticos não apenas no âmbito do governo, mas também nas relações humanas de qualquer tipo. Machado de Assis posiciona, lado a lado, as querelas na câmara e as situações cotidianas – a herança que foi gasta sem pudor, a futilidade da personagem que só pensa em vestidos e joias, o testamento falso, entre outros. Com uma boa dose de humor e sarcasmo, nas entrelinhas, Machado nos diz: o caráter humano é um caso patológico que se manifesta em menor ou maior grau, sobretudo quando há disputas pelo poder.
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