Nada é banal quando se observa com atenção. Até a rotina mais morna de uma pacata vizinhança pode esconder fatos dignos de um romance. Vanessa Barbara provou isso em Noites de Alface, um livro que corrobora a presença da autora na lista dos 20 melhores jovens escritores brasileiros da revista literária Granta.
Otto é um viúvo solitário e ranzinza, que sofre de insônia e leva os dias em uma profunda apatia desde a morte repentina da esposa, Ada. As singelas recordações dos hábitos simples que cultivou com a companheira, em mais de cinquenta anos de casamento, fazem com que nós, leitores, relevemos toda sua casmurrice. A ligação entre Ada e Otto é cativante.
Nada no ar parado o fazia lembrar-se de Ada; era o vento que a trazia de volta, agitada, puxando-a pela mão nos dias de chuva. Otto levantou-se e abriu a janela da sala. A corrente de ar ficou mais forte. Achava desconcertante a esposa ter desaparecido assim, de uma hora pra outra, pois ela vivia na segunda-feira, e na terça já não existia mais. Assim, de repente. (…) O sofá estava espaçoso demais, não havia mais vestidos ou pentes nem creme hidratante com aroma de pepino.
O próprio título curioso do livro, que inclusive já integrou uma lista aqui no blog, vem de um detalhe da rotina do casal. Nas noites em que o marido não conseguia dormir, Ada o obrigava a tomar uma receita sonífera ensinada por sua avó: chá de alface. Ele detestava esse costume e, desde a perda da esposa, só conseguia imaginar sua vida como uma sequência ininterrupta dessa má lembrança.
Agora Otto sofria de uma insônia infinita. Os maus pensamentos permaneceriam para sempre, pois nunca mais haveria manhãs – agora toda noite era de alface. E Otto odiava vegetais folhosos.
Os hábitos peculiares da vida conjugal de Otto e Ada não são os únicos da história. A vizinhança é repleta de personagens que, aparentemente, levam vidas triviais, mas, quando observados de perto, revelam singularidades que, de tão bizarras, chegam a ser engraçadas.
Temos um carteiro intrometido, um ex-soldado japonês vítima do Alzheimer, uma datilógrafa hiperativa, uma velha senhora esotérica, uma jovem antropóloga recém-casada e obcecada pela cultura dos esquimós e um farmacêutico viciado em ler bulas de remédio e com delírios de se tornar um grande nadador.
O nome desse último é Nico. Ele aproveita suas incursões às casas dos clientes para, além de entregar os medicamentos, discorrer horas a fio sobre suas mais recentes descobertas no universo dos efeitos colaterais.
“Olha só: em pacientes acima dos sessenta anos, os agentes simpatomiméticos podem causar reações adversas como confusão, alucinações, depressão do SNC e morte”, leu Nico, soltando um grunhido. “Que graça. Você toma um remédio e fica curado da rinite, mas tem um problema: morre.”
Barbara mistura, em uma escrita leve e de fácil leitura, o bom humor de perfis pitorescos à melancolia do viúvo carrancudo. Essa fórmula já bastaria para um excelente romance, mas a escritora ainda guarda ótimas surpresas.
Aos poucos, as excentricidades de cada personagem, que no começo parecem tão díspares, se combinam e formam uma história mirabolante – um verdadeiro quebra-cabeça, com várias peças faltando, que inquieta Otto. Ele, tão apaixonado por séries policiais, se vê obrigado a usar, na vida real, as artimanhas que aprendeu com a ficção.
Uma coisa era certa: Ada ocultara do marido, durante meses, algo muito grave com a conivência e a cumplicidade de todos os vizinhos. Todos, sem exceção. Talvez até se reunissem no salão da igreja para rir de Otto. Talvez ele fosse uma piada interna entre os moradores do vilarejo.
A solidão que a ausência de Ada deixou faz Otto despertar para detalhes antes engolidos pelos seus rituais metódicos. Ele começa a recordar conversas e fatos que passaram despercebidos. Mais do que a necessidade de resolver um mistério, essa busca ajuda Otto a ocupar seu tempo e superar aquele “sofá espaçoso demais”. A originalidade dos personagens e do enredo são marcantes, mas o grande trunfo da obra de Barbara é a delicadeza com que ela fala sobre a velhice:
O sr. Taniguchi já não era um vizinho respeitável e cumpridor de seus deveres cívicos; pelo contrário, era um velho desnorteado que cuspia nos outros e falava coisas sem sentido. A bem da verdade, Otto tinha medo de terminar da mesma forma. Poucas semanas antes, encontrara um grampeador industrial dentro de um balde, junto com o material de jardinagem, na portinhola enferrujada no quintal dos fundos. Levou o objeto para dentro de casa e o encarou intensamente tentando lembrar-se de quando o enfiara lá. Tentando lembrar-se, enfim, de sua existência. Otto nunca vira aquele grampeador na vida. Será que estava perdendo a memória? Nesse caso, quanto tempo demoraria para Ada sumir de suas lembranças?
Durante a leitura de Noites de Alface, lembrei-me de um trecho de Cem anos de solidão, o grande clássico de Gabo, em que ele diz: “o segredo de uma boa velhice não é mais que um pacto honrado com a solidão”. Barbara parece saber disso e traduz muito bem, no personagem de Otto, esse acordo.
Mariane Domingos
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