Quem pensa que contos são um gênero menor, ou menos importante, da literatura está redondamente enganado. Há desafio maior do que construir personagens complexos, um bom enredo e ainda deixar aquele ar de mistério em apenas umas poucas páginas? Para provar que escrever contos não é brincadeira, selecionamos cinco obras inesqueciveis de grandes autores da literatura brasileira e mundial. E você? Tem um conto preferido? Conte para a gente nos comentários!
1. A Sauna, de Lygia Fagundes Telles: Uma das mais importantes escritoras brasileiras é também uma grande contista. Neste texto, publicado em uma coletânea pela Companhia das Letras, um pintor em meio a um bloqueio critativo vai à sauna, onde trava um intenso diálogo interior sobre sua vida amorosa e artística. Ao relembrar conversas com a atual mulher, Marina, o pintor também tenta justificar para si próprio suas atitudes com Rosa, uma mulher inocente e ingênua, para quem ele prometeu uma vida e entregou um vazio.
O fluxo de consciência de um personagem no mínimo desprezível faz desse um dos melhores contos de Seminário dos Ratos (já teve resenha aqui).
Acho que você nunca amou ninguém a não ser você mesmo, ela disse apertando as palmas das mãos contra os olhos. Amei você – quis dizer e não tive forças. Ela sabe que se a tivesse encontrado como encontrei tantas outras se aventurando em Paris, não a teria levado até a embaixada para o casamento. Usava roupetas pobres porque estava na moda ser pobre, mas eu estava ciente de que o pai era dono de fábricas de tecido, da avareza soube bem mais tarde. Amei Rosa – podia ter dito. Mas sabe também que se Rosa tivesse ganho com suas fórmulas, se ficasse aquele tipo de mulher que se leva pelo braço assim na frente, como um troféu, eu não viajaria sozinho. Nunca amei ninguém a não ser a mim mesmo? Mas se também não me amo, você sabe que vivo fugindo de mim. Ou não?
2. O Beijo, de Antón Tchekhov: Tchekhov foi, sem dúvida, o grande mestre da história curta, como nos lembra o grande tradutor Boris Schnaiderman logo no prefácio de O Beijo e Outras Histórias. “Mestre consumado na miniatura, Tchekhov quis uma obra que lhe permitisse mostrar melhor o entrechoque de tendências, as lutas interiores das personagens’, diz.
Em O Beijo, conto que dá título ao livro, um grupo da artilharia do exército russo é convidado pelo general Von Rabbek a tomar chá em sua casa. Constrangidos a aceitar, os oficiais são logo cercados por música, jogos e mulheres. Um dos oficiais, Riabóvitch, extremamente tímido e sem jeito, não sabe como se portar até que, sem querer e por engano, uma mulher o beija na face, em um corredor escuro da casa. A partir daí, sente-se apaixonado, sonha com a mulher amada e com o retorno à casa do general. Imagina que a ele também o destino reserva casamento e felicidade. Tchekhov parece nos fazer lembrar que nunca é demais sonhar, mesmo que às vezes tenhamos que nos despertar no dia seguinte.
Logo adormeceu, e o seu último pensamento foi que alguém o acarinhara e alegrara, que em sua vida ocorrera algo extraordinário, tolo, porém muito bom e alegre. Esse pensamento não o abandonava mesmo durante o sono.
3. A Cartomante, de Machado de Assis: Em A Cartomante, Machado de Assis retoma o tema de Dom Casmurro ao narrar a traição do marido pela mulher com seu melhor amigo. Aqui, porém, a história é envolvida de certo misticismo. Logo no começo, Rita, a esposa de Vilela, que tem um caso com seu amigo Camilo, visita uma cartomante e volta aliviada. Ela lhe garantiu que tudo ficaria bem. Camilo ri e demonstra certo ceticismo em relação ao futuro descrito nas cartas.
Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muita coisa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranquila e satisfeita.
As dúvidas de Camilo sobre a cartomante vão se dissipar de acordo com suas necessidades. Ao receber um bilhete de Vilela solicitando que vá com urgência à sua casa, ele teme que o amigo tenha descoberto tudo e o chame apenas para liquidá-lo. No caminho, acaba parando na frente da casa da cartomante e decide fazer uma visita. Ela o acalma, diz que tudo ficará bem, que não há o que temer. Ele então se dirige com leveza à casa do amigo, pretendendo retomar contato. Ao chegar, pergunta a Vilela o que há:
Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: – ao fundo, sobre o canapé, estava Rita morta e ensanguentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão.
Tem fim mais ao estilo de Machado de Assis? Esse é um dos meus contos favoritos dele, mas todos valem a leitura!
4. Majestade, de F. Scott Fitzgerald: Principal narrador dos anos dourados dos Estados Unidos, Fitzgerald também sabia escrever histórias fortes e concisas. Embora a mais famosa seja O diamante do tamanho do Ritz, outros contos são igualmente deliciosos, como Majestade. O primeiro parágrafo já diz muito sobre o que será narrado:
Incrível não é que as pessoas, no fim das contas, se deem melhor ou pior do que se esperava. Incrível é como se mantêm à tona, cumprem as expectativas e parecem levadas por seu inevitável destino.
No caso, o destino inevitável de Emily Castleton é ser uma enganadora bem-sucedida. Uma das garotas mais bonitas de sua geração, começa a sentir que ficou para trás quando as antigas colegas começam a casar. Decide então conquistar um bom partido, mas Emily simplesmente não era feita para aquele tipo de evento. Larga o noivo à beira do altar e volta para a Europa, onde encontrará um simulacro de princípe que lhe permitirá, de vez em quando, andar na carruagem da rainha da Inglaterra, para ciúme de sua prima, Olive, que ficou com o marido abandonado. Décadence avec élégance, não é?
5. Música para Camaleões, de Truman Capote: Meu livro favorito de Truman Capote é A Sangue Frio, mas não podemos deixar de admitir que esse escritor excêntrico, criador do jornalismo literário, também era um contista de mão cheia. Em Música para Camaleões, um viajante conversa com uma aristocrata de Martinica capaz de reunir camaleões quando toca piano. A conversa, que tem um quê de realismo fantástico, fala sobre Carnaval, turistas, grandes pintores e um espelho negro, que chama atenção do visitante.
Meus olhos o miram, distraídos – são atraídos por ele contra minha vontade, como às vezes são iressistivelmente cativados pelo chuvisco sem sentido de um aparelho de televisão mal regulado. O poder que ele tem é assim frívolo, e portando vou descrevê-lo em excesso – à maneira desses romancistas da “avant-garde” francesa que, tendo descartado a narrativa, os personagens e a estrutura, se restringem a parágrafos que ocupam uma página toda detalhando os contornos de um único objeto, a mecânica de um movimento isolado: uma parede, uma parede branca em que uma mosca descreve meandros. Assim: o objeto na sala de estar de Madame é um espelho negro.
Daqueles contos que abrem mil possibilidades, sem realmente se encerrar.
Tainara Machado
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