Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: “Mãe morta. Enterro amanhã. Sinceros sentimentos.” Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem.
Esse trecho, um dos mais famosos começos da literatura mundial, é um aperitivo da leitura de O Estrangeiro – romance de Albert Camus que surpreende pela naturalidade com que os acontecimentos mais bizarros e improváveis são conduzidos.
A história se passa na Argélia, quando o território ainda era colônia francesa. O narrador e personagem principal é Mersault, um homem de poucas palavras e cuja objetividade se confunde com seu comportamento frio.
O início é um relato minucioso do enterro de sua mãe, na cidade de Marengo, onde ela estava internada há tempos em um asilo. Ao contrário do que se espera em uma situação de luto, as descrições de Mersault são muito mais resultado de suas experiências sensoriais, sobretudo com o clima cálido da região, do que de seus sentimentos:
Tudo se passou, então, com tanta rapidez, certeza e naturalidade, que já não me lembro de mais de nada. Uma coisa apenas: na entrada da aldeia, a enfermeira falou comigo. Tinha uma voz singular, que não combinava com o seu rosto, uma voz melodiosa e trêmula. Ela me disse:
– Se andarmos devagar, arriscamo-nos a uma insolação. Mas se andarmos depressa demais, transpiramos e, na igreja, apanhamos um resfriado.
Esse primeiro capítulo, embora pareça banal, marca o princípio de um enredo mirabolante. A frieza com que Mersault encara o enterro da mãe não dá trégua em nenhum momento na narrativa. No dia seguinte, de volta à sua casa em Argel, ele age como se nada fora do comum tivesse acontecido e tem um dia de diversão na companhia de Marie, uma antiga paquera. A morte da mãe era assunto encerrado:
Pensei que passara mais um domingo, que mamãe agora já estava enterrada, que ia retomar o trabalho e que, afinal, nada mudara.
As descrições de Camus são de uma riqueza ímpar. Nos sentimos sob o intenso verão argelino. O sol, aliás, pode ser considerado um personagem do livro. Vários dos momentos da vida de Mersault são marcados pelas percepções e sensações extremas que o calor lhe causa:
Assaltaram-me as lembranças de uma vida que já não me pertencia, mas onde encontrara as mais pobres e as mais tenazes das minhas alegrias: cheiros de verão, o bairro que eu amava, um certo céu de entardecer, o riso e os vestidos de Marie.
Não vou revelar muito mais da história, porque há um elemento surpresa que torna o enredo imperdível. O suspense e o imprevisível são artifícios muito bem explorados por Camus. Avançamos na leitura esperando o momento em que o improvável vai acontecer. Esse instante chega no final da primeira parte. Uma parada estratégica para o leitor tomar fôlego e se recuperar do sentimento de perplexidade que domina a cena. Camus nos mostra que o controle é uma falácia e nem tudo tem uma explicação lógica. Em alguns segundos, Mersault vê sua vida mudar de maneira incontornável:
Sacudi o suor e o sol. Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz.
Os capítulos seguintes são bastante reflexivos. Todos os fatos, aparentemente banais, que desenharam a rotina do personagem na primeira parte transformam-se em uma reflexão profunda sobre a existência humana – destino, valores e escolhas. Como se chegou até aquele ponto? Há mesmo uma explicação? Camus coloca em dúvida até mesmo a disposição de Mersault para descobrir essas respostas:
Percebia, sobretudo, que não o deixava à vontade. Não me comprendia e ficava com uma certa raiva de mim. Tinha vontade de lhe afirmar que eu era como todo mundo, exatamente como tudo mundo. Mas tudo isso, no fundo, não tinha grande utilidade e deixei de lado por preguiça.
Nessa narrativa muito bem encadeada, Camus ainda encontra espaço para orquestrar uma crítica à postura francesa em relação à colônia argelina. Um dos personagens centrais da história é o “árabe”. Apesar de ser o estopim para o futuro sombrio de Mersault, ele não é decisivo. Não tem sequer um nome. Ao que parece, sua existência vale muito pouco. Mersault comete uma falta muito grave contra o árabe, mas, no final das contas, é julgado, pela sociedade e pelas leis francesas, por não ter chorado no enterro da mãe e, portanto, ter algum tipo de desvio emocional que pode significar um perigo no futuro. É como se essa ameaça já não tivesse se concretizado. Vale lembrar que Camus é um francês nascido na Argélia, em uma família pied-noir – termo que designa os cidadãos franceses que viveram no norte africano francês. Mais do que ninguém, ele sabia todos os detalhes, geográficos e sociais, do solo argelino.
Uma dica interessante, depois de terminada a leitura de O Estrangeiro, é voltar ao primeiro capítulo, em que o funeral da mãe de Mersault é descrito, só para se certificar do talento de Camus nas entrelinhas. Percebemos como várias cenas anunciam, por meio de metáforas sutis, o destino do narrador. Eu diria mais: a capa, com seu título simples e direto, já é profética. Afinal, Mersault não se encaixa no mundo, ele é um estrangeiro da sua própria existência.
Mariane Domingos
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