A constatação de que o mundo está cada vez mais quente e que o planeta está ameaçado pode suscitar comoção e interesse em muitas pessoas, mas não em Michael Beard, o chefe do Centro Nacional de Energia Renovável e personagem principal de Solar, excelente romance de Ian McEwan.
O inglês não costuma ser muito generoso com seus personagens. Beard é um típico anti-heroi. Ganhou o prêmio Nobel de Física pela Conflação Beard-Einstein há mais de duas décadas, por uma confluência de fatores em que seu talento não necessariamente teve grande peso. Desde então, “aspergido com o pó mágico de Estocolmo”, leva uma vida fácil de palestras, conferências e pareceres, como descreve McEwan com a ironia que caracteriza seu estilo ácido de escrita:
Uma coisa era certa: duas décadas haviam transcorrido desde que pela última vez sentara sozinho e em silêncio por horas a fio, com um lápis e um bloco nas mãos, para pensar, para examinar uma hipótese original, para brincar com ela, estimulá-la a ganhar vida própria.
Apoiado na farsa de suas façanhas intelectuais, Beard está casado com a quinta esposa. Todos os outros casamentos terminaram por causa de suas traições e a história com Patricia não seria muito diferente se ela não tivesse decidido lhe dar o troco. Após descobrir um de seus casos, começa a sair com o empreiteiro que reformou a casa do casal, um homem mais alto e mais novo do que Beard.
Abandonado pela esposa, o físico se vê, então, em um estado semi-depressivo e psicótico, transtornado pelo desejo pela mulher, agora que não a tem mais ao alcance. A surpresa com esse sentimento o faz refletir sobre si mesmo e, se o personagem não percebe na hora sobre como sua vida é patética, McEwan faz questão de mostrar, pouco a pouco.
Afinal, confrontou a realidade do que era. Ao sair do chuveiro, entrevendo uma massa rosada em formato de cone no espelho embaçado, limpou o vapor, se virou de frente e não acreditou no que viu. Que engenhos de autopersuasão o haviam levado a crer durante tantos anos que seu aspecto tinha algo de sedutor? Aquela faixa idiota de cabelo na altura do lóbulo das orelhas, que ampara a calvície; a nova aba de gordura pendurada sob os sovacos; a estupidez inocente da adiposidade na barriga e no traseiro.
Para fugir da mediocridade em que sua vida se transformou, Beard aceita um convite para uma viagem para o Polo Norte com um grupo de artistas “que se preocupam com o aquecimento global”, com o objetivo de testemunhar o derretimento das geleiras, a prova cabal de que a Terra vai mal.
A viagem, que rende algumas passagens hilárias, como a que Beard tenta fazer xixi a uma temperatura muito abaixo de zero, mostra com boa dose de sarcasmo os esforços daqueles que se dizem preocupados com o meio ambiente, desde que não tenham que sacrificar nenhum conforto. O navio é aquecido, a comida é servida por um chefe italiano “de renome” e as descargas de dióxido de carbono emitidas para que a viagem seja possível serão compensadas pela plantação de árvores na Venezuela, “tão logo se definisse o local e fossem subornadas as autoridades competentes”.
Indiferente ao planeta, Beard é, paradoxalmente, o único que não está esfuziante em ver o planeta derretendo.
Era por isso que ele não gostava das pessoas que se envolviam em política:a injustiça e a calamidade as animavam, eram uma fonte de nutrição, a seiva vital, lhes davam prazer.
McEwan a todo tempo nos faz enxergar como nossos desejos e objetivos são comezinhos, principalmente quando tentamos nos atribuir missões nobres. Beard aceita o convite para liderar o Centro Nacional de Energia Renovável por causa do salário. Mesmo Braby, seu bem intencionado subordinado imediato, que faz todo o trabalho no Centro, se sujeita a todo tipo de tarefa inútil quando solicitado pelo Ministro da área, porque sonha em ser feito cavaleiro pela rainha.
Na volta de sua viagem, um encontro surpresa muda a trajetória da narrativa. McEwan, um mestre da arquitetura do romance, alça a um papel de destaque um personagem secundário com o qual somos levados a antipatizar logo de cara. A partir dali, o conflito entre ética e sucesso, eixo central de outras obras do inglês, passa a dominar a narrativa, com um fim surpreendente, claro.
Em tempos de Olímpiadas, diríamos que McEwan é um autor completo. Ele escreve, inova, pesquisa de um modo que até nos faz pensar que seu trabalho é simples. Obviamente não é. Chamá-lo de gênio talvez o incomode, se pensarmos nas reflexões que faz sobre a comunidade científica que cerca Beard, mas seu estilo e sua capacidade de estruturar romances certamente o colocam no topo do que é produzido na literatura hoje.
Eu, que leio sempre em busca de marcas autobriográficas dos escritores nas histórias, tenho enorme dificuldade para descobrir o que há do McEwan “real” em seus livros. Os motivos dos seus romances parecem escolhidos muito mais por sua enorme curiosidade intelectual do que por experiências pregressas. É a condição humana, o falso orgulho, a sensação de autoengano, a comiseração que sentimos por nós mesmos, que o interessam.
Ah, e o autor vem ao Brasil em breve. Mal podemos esperar!
Tainara Machado
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10 de agosto de 2016 at 20:27
Dos livros de Ian McEwan que já li, este é um dos mais legais. No romance acontecem coisas que na verdade não esperamos, e a maneira como ele coloca o caráter dos personagens, principalmente o principal, é muito boa. Há momentos que sentimos raiva de sua postura, em outros tentamos compreendê-lo ou ficamos com pena da solidão em que ele vive, apesar de todas as conquistas na área científica. Ian McEwan é ótimo! E a edição da companhia das letras possui uma capa linda e bem feita, a belíssima fotografia que possui textura remete vários aspectos da história.