As primeiras páginas de A Amiga Genial, primeiro livro da “série napolitana” da italiana Elena Ferrante, é daquelas que a gente lê e deseja ter escrito. Tudo começa quando Elena Greco, a narradora, recebe uma ligação do filho de sua melhor amiga, Rafaella Cerullo, que informa o desaparecimento de sua mãe.
Faz pelo menos trinta anos que ela me diz que quer sumir sem deixar rastro, e só eu sei o que isso quer dizer. Nunca teve em mente uma fuga, uma mudança de identidade, o sonho de refazer a vida noutro lugar. E jamais pensou em suícidio, incomodada com a ideia de que Rino tivesse de lidar com seu corpo, cuidar dele. Seu objetivo sempre foi outro: queria volatilizar-se, queria dissipar-se em cada célula, e que ninguém encontrasse o menor vestígio seu. E, como a conheço bem – ou pelo menos acho que conheço -, tenho certeza de que encontrou o meio de não deixar sequer um fio de cabelo neste mundo, em lugar nenhum.
Elena, de fato, a conhecia. Lila, como só ela chama a amiga, evaporou. As roupas no armário sumiram, os sapatos desaparecem, ela recortou até as fotos em que aparecia ao lado do filho, ainda menino. O sumiço misterioso reacende na narradora a vontade, muito debatida pelas duas quando meninas, de escrever um livro.
É, portanto, pelos olhos de Elena que a personagem de Lila será construída, num exercício narrativo realizado com maestria por Ferrante. Não é fácil construir uma personalidade com a força e as várias facetas de Lila do ponto de vista adotado por Ferrante.
A história da amizade entre as duas tem tropeços, mágoas, competições, rivalidade, mas ao mesmo tempo elas não conseguem deixar de estar uma com a outra, mesmo quando separadas. Os caminhos que elas vão traçar são diferentes. No primeiro livro, acompanhamos apenas parte dele, a infância e a juventude das duas. Enquanto Elena se agarra aos estudos como a uma boia de salvação do mundo violento em que vivem, Lina, que era brilhante, não tem permissão para seguir na escola e pensa em outros estratagemas para escapar daquele contexto.
Em uma troca de cartas com Ferrante, que será publicada em livro, o escritor italiano Nicola Lagioia comenta que um dos aspectos mais poderosos de A Amiga Genial é a interdependência entre as duas amigas. Mesmo quando se afastam, os atos de Lila continuam a se refletir em Elena. Ela imagina questionamentos, brigas, as obsessões constantes de Lila, como se as duas estivessem juntas.
Ferrante, que cresceu em Nápoles quase sem espaços individuais, responde que, para ela, a ideia de que cada “Eu” é uma amálgama de vários “outros” não era uma teoria, e sim uma realidade. “Na mais absoluta tranquilidade ou no mais tumultuado dos eventos, em segurança ou em perigo, inocentemente ou em corrupção, somos uma multidão de outros. E essa multidão certamente é uma bênção para a literatura”, disse ela.
Em A Amiga Genial, essa multidão habita o mesmo bairro pobre e violento de Nápoles, com famílias cujas histórias se cruzam e se misturam, em conflitos que atravessam gerações. São muitos nomes – Pasquale, Rino, Antonio, Stefano, Carmela, Ada – mas Ferrante nos conduz pela trama como se estivéssemos ali, no bairro, e também conhecêssemos aquela gente há muito tempo. Como na noite de Ano-Novo em que os meninos do bairro se reúnem para competir com a rica família dos Solara na tradicional queima de fogos da data.
Bruscamente o fogo se intensificou na sacada, e o céu e a rua começaram a explodir. A cada disparo, especialmente se o petardo fazia um barulho de destruição, chegavam da sacada obscenidades entusiásticas. Porém, de surpresa, eis que Stefano, Pasquale, Antonio e Rino começam a responder com outros disparos e obscenidades equivalentes. A cada rojão dos Solara eles respondiam com rojão, a cada bomba uma bomba, e no céu se expandiam corolas admiráveis, e embaixo a estrada lampejava, tremia, e Rino a certo ponto chegou a subir de pé no parapeito, urrando insultos e lançando morteiros, enquanto sua mãe gritava de terror: “Desça, senão vai cair lá embaixo”.
A linguagem de Ferrante é seca e direta e, ao mesmo tempo, cativante, emocionante. O fio condutor é a amizade entre as duas meninas, mas esse é apenas o pano de fundo para uma história que tem como ponto de partida a Itália dos anos 1960 para os dias atuais, acompanhando a ascensão social de algumas famílias no pós-guerra, os sonhos de riqueza, a sociedade machista e as poucas possibilidades para as mulheres, além do casamento. É uma história atual e ao mesmo tempo um clássico. Ainda bem que temos três volumes pela frente e que Ferrante produziu intensamente nos últimos 20 anos.
No entanto, ao contrário de Karl Ove Knausgard, outra sensação literária do momento, não espere conseguir um autógrafo da autora em breve. Um parco grupo de colaboradores próximos sabe de fato qual é sua identidade. O nome dela é apenas um pseudônimo. Ela só concede entrevistas por e-mail e, mesmo assim, raramente. Questionada, certa vez, porque não se decida à atividade de divulgar seu livro, uma tarefa a que a maioria dos autores se subjulga, com maior ou menor boa vontade, ela apenas respondeu:
Já fiz o suficiente por esta história, escrevi-a.
PS: Já falei aqui antes das minhas paixões literárias. É uma novidade me apaixonar por uma escritora que não tem rosto e da qual sabemos quase nada, mas mesmo assim fico caçando resenhas, conversas, pequenos fragmentos de sua presença no mundo. E eis que encontro Rory, da série Gilmore Girls, apresentando a série napolitana à primeira dama dos Estados Unidos, Michelle Obama. É muito amor.
Tainara Machado
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