Acabou! Depois de dois meses de uma leitura intensa, chegamos ao final de Vozes de Tchernóbil. E você, o que achou do livro? Mande sua opinião para o e-mail blogachadoselidos@gmail.com. Na próxima semana, publicaremos por aqui as impressões dos nossos leitores.

Por Mariane Domingos e Tainara Machado

Nos últimos posts sobre Vozes de Tchernóbil, destacamos o excelente trabalho de edição de Svetlana Aleksiévitch. O seu discurso na cerimônia do prêmio Nobel de Literatura, em dezembro do ano passado, é significativo para a narrativa, porque amarra alguns temas presentes nos diversos relatos, agora sob o seu ponto de vista.

Fechar o livro com essa fala da escritora também foi um grande acerto de edição, dessa vez da Companhia das Letras. O discurso é belo e tem o tom pessoal de Aleksiévitch que, por vezes, sentimos falta ao longo do livro. O capítulo final parece nos aproximar ainda mais da autora do que aquele início, em que ela entrevista a si mesma. Talvez seja porque depois de ouvir tantas vozes estejamos mais preparados para entender as inquietações que mobilizaram Aleksiévitch.

Uma das reflexões mais interessantes dessa parte final é se o que ela escreve é ou não é literatura – uma questão que inevitavelmente passa por nossa cabeça ao longo da leitura. Quando Aleksiévitch esclarece alguns princípios do seu processo de apuração e escrita, conseguimos entender melhor o significado do subtítulo que está lá na capa: “a história oral do desastre nuclear”.

Quando ando pelas ruas e me surpreendo com alguma palavra, frase ou exclamação, sempre penso: quantos romances desaparecem sem deixar rastro no tempo. Permanecem na escuridão.

Em vez de transformar essas potenciais narrativas em ficção, Aleksiévitch prefere dar voz a essas pessoas. Ela é, afinal, uma “mulher-ouvido”, como ela mesmo se define. A marca da oralidade, diz ela, o modo como as pessoas falam, as vozes humanas solitárias, são uma paixão. Por isso, a forma não estava em suas mãos. Ela tinha que narrar essas histórias de “voz em voz”, como fez nos últimos quarenta anos.

No caso de Tchernóbil, essa escolha tem um significado adicional. Os russos, de maneira geral, são um povo literato – não à toa, temos grandes escritores na região – e a população atingida pela catástrofe nuclear, naturalmente, procurou encontrar nos livros alguma reminscência ou explicação para o que estava acontecendo. Mas ela não existia. Tchernóbil foi um evento único, daqueles sobre os quais precisamos constantemente nos relembrar para que não acontençam novamente. Nada mais justo que esse conhecimento seja formado pela voz daqueles que procuraram respostas e não as encontraram.

Na história oral do desastre nuclear, a autora deu espaço para inúmeras pessoas atingidas, em maior ou menor grau, pelo acidente.. Ela ouviu crianças, oficiais, cientistas, velhinhos que decidiram permanecer em suas casas, jovens que foram deslocados para a zona, mães, pais, refugiados.

A lista é extensa, mas os relatos escolhidos para abrir e fechar o livro são dois casos de amor, de mulheres que perderam seus maridos para o reator, homens que foram destacados para tentar apagar as chamas da usina nuclear. Para elas, as homenagens póstumas nada significavam perto do tamanho da perda que tiveram de enfrentar. Os relatos são assustadores porque elas, mesmo testemunhando os efeitos de níveis inimagináveis de radiação, foram capazes de continuar a enxergar seus maridos no que os médicos apelidaram de “usinas ambulantes”. Elas viveram o que poucos quiseram ou puderam ver. E ainda assim só sentiam amor.

No discurso de aceitação do prêmio Nobel, Aleksiévitch lembrou-se de sua infância:

O nosso mundo pós-guerra era um mundo de mulheres. Eu me recordo, sobretudo, de que as mulheres falavam não da morte, mas do amor. Contavam sobre o momento em que se despediram pela última vez daqueles que amavam, sobre como os esperaram e ainda os esperavam. Já haviam se passado anos, mas elas continuavam esperando: “Que voltem sem braços, sem pernas, eu o carrego nos meus braços”. Sem braços, sem pernas… Creio que desde a infância que já sabia o que é o amor.

Além do amor, o sofrimento é o fio que une todas as vozes do livro. Cada entrevistado o manifesta de uma forma e Aleksiévitch tenta captar e registrar todas elas, para evitar o esquecimento e, assim, contribuir para que todos aqueles traumas não sejam em vão:

O nosso capital mais importante é o sofrimento. É a única coisa que constantemente obtemos. Estou sempre buscando uma resposta: por que os nossos sofrimentos não se convertem em liberdade? Serão eles inúteis? Tchaadáiev tinha razão: a Rússia é um país sem memória, um espaço de amnésia total, uma consciência virgem de crítica e de reflexão.

Esse retrato que Aleksiévitch faz do povo russo e do homem soviético é outro grande destaque do livro. Nos depoimentos, temos diversas teorias sobre como o comportamento e a formação das pessoas influenciaram os rumos do desastre nuclear. Para quem se interessa pela história e pela cultura russa, a leitura ganha ainda mais relevância.

O povo bielorrusso e todos os outros que sofreram os efeitos de Tchernóbil, sem dúvida, encontram nesta obra um esforço à altura de suas histórias. Lá no começo do livro, Aleksiévitch nos impressiona com a grandeza de seu objetivo:

Destino é a vida de um homem, história é a vida de todos nós. Eu quero narrar a história de forma a não perder de vista o destino de nenhum homem.

As dúvidas que tínhamos acerca do sucesso das pretensões da escritora se esvaem ao longo da leitura. Chegamos à última página com a certeza de que Aleksiévitch produziu literatura da melhor qualidade, daquela que merece não apenas o prêmio Nobel, mas também a notoriedade que garante que ela seja lida por multidões e por séculos. Terminamos o livro mais bem informados e, principalmente, mais sensíveis ao amor e ao sofrimento que nos rodeiam. No fim das contas, não é disso que se trata a boa literatura?

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