Voltar para casa. Essa frase simples, cheia de significado e tão cara à literatura, ganhou contornos dignos de nota nas mãos da premiada escritora norte-americana Toni Morrison.

Não são raras as narrativas que partem da ideia lírica do retorno ao lar. A parábola bíblica do filho pródigo e a odisseia de Ulisses em seu regresso a Ítaca estão aí para confirmar o flerte antigo da literatura com essa temática. No livro Voltar para Casa (no original, Home), lançado neste ano no Brasil, Morrison se destaca por questionar a visão romântica de lar. Já na epígrafe da obra, uma canção escrita pela autora muitos anos antes, percebemos essa intenção:

De quem é esta casa?
De quem é a noite que não deixa entrar a luz
aqui?
Me diga, quem é dono desta casa?
Não é minha.
Sonhei com outra, mais doce, mais clara
com uma vista de lagos que barcos pintados atravessam;
de campos largos como braços abertos para mim.
Esta casa é estranha.
Suas sombras mentem.
Olhe, me diga, por que minha chave encaixa na fechadura?

O livro retrata os anos 50 nos Estados Unidos, sob a ótica de um veterano da Guerra da Coreia, Frank Money. No caminho de retorno à sua terra natal, na Georgia, Frank se depara com a hostilidade de um país segregado e racista e tem dificuldades para lidar com os fantasmas de memórias dolorosas da infância e da guerra.

Por meio dos surtos e alucinações do jovem, Morrison mostra que o mais difícil não é sobreviver ao campo de batalha, mas sim viver depois dele. Quando conta a um amigo sua história, Frank ouve uma verdade que foi e ainda é partilhada por tantos veteranos de guerra:

Um Exército reintegrado é miséria reintegrada. Vocês todos vão lutar, voltam e eles tratam vocês feito cachorros. Corrigindo: tratam cachorro melhor.

Os capítulos são intercalados por breves relatos, em primeira pessoa, de Frank, como se ele contasse a sua história para que alguém a escrevesse. O restante da narrativa é em terceira pessoa e traz a perspectiva não apenas do jovem, mas também de personagens que cruzaram sua vida em algum momento, como a avó Lenore, a namorada Lilly e a irmã Ycidra, a quem todos chamam de Ci.

Ci é tão importante para narrativa quanto Frank. É o bilhete de uma amiga dela, dizendo “Venha depressa. Ela vai morrer se você demorar” que desencadeia o regresso do irmão à pequena cidade de Lotus:

Não sinto falta de nada daquele lugar, a não ser das estrelas.

Só o sofrimento da minha irmã podia me fazer pensar em ir praqueles lados.

Não me pinte como algum herói entusiasmado.

Eu tinha que ir, mas estava apavorado.

Nas figuras de Frank e Ci, Morrison trabalha temas frequentes em sua obra: a opressão, o racismo e a sociedade machista. A menina cresceu sob a proteção do irmão, sempre obedecendo a outras pessoas e contando com um herói para lhe alertar sobre os perigos do mundo:

Vigiada, vigiada, vigiada por todos os adultos do nascer ao pôr do sol e recebendo ordens não apenas de Lenore, mas de todos os adultos do lugar. Venha cá, menina, ninguém te ensinou a costurar? Sim, senhora. Então por que a barra da sua roupa está pendurada desse jeito? Sim, senhora. Quer dizer, não, senhora. Isso aí é batom na sua boca? Não, senhora. O que é então? Cereja, dona, quer dizer, amora. Eu comi umas. Cereja coisa nenhuma, limpe essa boca. Desça dessa árvore, está ouvindo? Amarre o sapato, largue essa boneca de trapo e pegue a vassoura, descruze as pernas vá tirar as ervas daninhas daquele jardim endireite as costas não me responda.

Parece que é Ci, e não Frank, quem está no Exército. Quando o irmão vai para guerra, mais do que desprotegida, ela se vê despreparada para enfrentar o mundo. Desilusões após desilusões, Ci fica à beira da morte e é obrigada a retornar para casa, onde vivencia uma experiência trágica que a faz crescer e encontrar a liberdade dentro de si mesma. Em um dos trechos mais bonitos do livro, Ethel, uma mulher de fibra que ajuda Ci a descobrir sua própria força, diz a ela:

Olhe pra você. Você é livre. Nada nem ninguém é obrigado a te salvar, só você mesma. Plante a sua própria terra. Você é moça e mulher e as duas coisas têm sérias limitações, mas você é uma pessoa também. Não deixe a Lenore ou um namoradinho qualquer e com toda certeza nenhum médico do mal resolver quem você é. Isso é escravidão. Em algum lugar aí dentro de você está essa pessoa livre de que estou falando. Encontre ela e deixe ela fazer algum bem neste mundo.

Não importa a década, esse conselho será sempre atual, assim como a narrativa de Morrison, que sabe equilibrar questões universais, como as discussões sobre liberdade, com histórias específicas, relacionadas à experiência do negro e da mulher.

Sem dúvida, Morrison é forte como Ethel pede que Ycidra seja. Nascida em 1931, em Ohio, nos Estados Unidos, foi a primeira escritora negra a receber o Prêmio Nobel de literatura, em 1993. Meu primeiro contato com sua obra foi há alguns anos com Amada, uma daquelas leituras essenciais que ampliam de maneira incontornável sua visão de mundo.

Em Voltar para Casa, não foi diferente. O título aparentemente banal ganhou novas cores quando entendi que, para Morrison, o símbolo do lar vai muito além de uma cidade onde se passou a infância. As descobertas que Ci e Frank fazem não têm a ver especificamente com a cidadezinha de Lotus, mas sim com a sombra que habitava dentro deles e que era reflexo de uma sociedade igualmente tenebrosa:

Esta casa é estranha.
Suas sombras mentem.
Olhe, me diga, por que minha chave encaixa na fechadura?

Ninguém deseja destrancar a porta de um lugar ruim. Assim como na canção usada na epígrafe, Frank, Ci e muitos de nós já sonhamos com outra casa, “mais doce, mais clara, com uma vista de lagos que barcos pintados atravessam; de campos largos como braços abertos para mim”. É sobre isso que Morrison fala. Você pode ir da Georgia à Coreia buscando a sensação de segurança, mas só vai encontrá-la quando experimentar a liberdade. O mundo é o nosso lar e somos nós quem o tornamos aconchegante ou não.

Mariane Domingos

Mariane Domingos

Eu amo uma boa história. Se estiver em um livro, melhor ainda. / I love a good story. If it has been told in a book, even better.
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