Borrar as fronteiras entre o jornalismo e a literatura não é tarefa fácil. Há sempre o risco de se avançar demais em um dos lados e comprometer a outra parte da equação: a informação ou a narrativa. Em O Livro Amarelo do Terminal, no entanto, Vanessa Barbara não faz concessões.
Para escrever esta reportagem, Barbara passou seis meses percorrendo os corredores, passarelas e portões do Tietê, ainda como estudante de jornalismo. Levantou artigos sobre o período de construção do terminal, as idas e vindas da obra, as reformas antes mesmo da inauguração. Falou das estatísticas oficiais que atraem atenção dos portais de notícias nas vésperas de feriado. E encontrou também personagens que parecem saídos da ficção. Minha parte preferida são as boas horas em que ela passou ao lado das moças do balcão de informação, uma área que Barbara também parece ter apreciado muito.
“Onde é que eu posso comprar um teco de pimenta?”, um homem perguntou para Silvana, atendente do local. “Eles pensam que a gente tem resposta para tudo”. Como no dia em que chegou uma velhinha calma, perguntando:
– Moça, onde é que eu faço inscrição para ir pro Iraque?
-… Desculpe?
– Pro Iraque. Eu quero ir pra guerra, buscar o meu filho.
– Ahn… senhora, nós não oferecemos esse tipo de serviço.
Se as moças do balcão de informação não sabem dizer onde se alistar para o Iraque, pode ter certeza que elas poderão te ajudar se o objetivo for saber onde fica o Shopping D, qual ônibus vai para Jaguariúna ou como achar o Pelé na estação.
Barbara é dona de um texto leve e bem humorado que funciona muito bem para o jornalismo literário. Suas habilidades de repórter investigativa, por exemplo, são usadas para desmascarar a voz de “Álvaro”, o locutor que a todo o tempo anuncia informações, pessoas perdidas e outros recados pelas caixas de som do terminal. Álvaro é, na verdade, muitas pessoas. Todos os operadores que se revezam na sala de comando e falam em código, para ser mais precisa – quem nunca ficou curioso sobre o que significa QAP?
O trabalho de apuração é, brincadeiras à parte, bem mais extenso e sério. Pela cobertura da imprensa na época da construção do terminal, Barbara montou um quadro de desvios de recursos, desmandos, conflitos de interesse com o setor privado, projetos mal feitos. Nada que tenha mudado muito nos últimos 30 anos. Para não perder o senso de humor, a jornalista mistura os recortes de jornal sobre a construção do terminal com trechos de músicas. Depois de uma matéria que fala das (enormes) quantidades de material necessário para construção em um terreno pantanoso e não muito próprio para circulação massiva de veículos e pessoas, Barbara emenda:
Depende de nós
Que o circo esteja armado
Que o palhaço seja engraçado
Que o riso esteja no ar.
Este foi o trabalho de conclusão do curso de jornalismo da autora, e ali ela já critica um dos maiores vícios do jornalismo atual, de reprodução de releases. Para facilitar um pouco a vida dos grandes portais, Barbara criou uma espécie de passo a passo da cobertura sobre a movimentação de passageiros nas vésperas de feriados e outras datas de grande fluxo de pessoas. À semelhança das “máscaras” que costumam ser usadas nas redações para esses casos, é possível completar a notícia com a data, o número de passageiros transportados, o trânsito médio nas rodovias, o tempo de espera para embarcar.
A jornalista também mostra que é possível preencher notícias com histórias. Como a de Raimunda, que se lembra de tomar leite com bolo de chocolate na casa de dona Ida, uma bailarina pobre que se casou com Felício, magnata de Guaratinguetá. Quando se casaram, foram morar na área em que hoje é o terminal do Tietê. Anos mais tarde, um engenheiro visitou Felício.
(…) e disse que ele iria perder todo aquele terreno devido às futuras construções do metrô; que não receberia quase nada de indenização e que o melhor seria vender a área antes que ela se desvalorizasse por completo. Felício acreditou no conto e vendeu a vacaria por um preço baixíssimo. Morreu “de tristeza” alguns anos depois.
Raimunda, lindíssima, casou-se com um italiano e, tempos mais tarde, cursou a faculdade, como sonhava. Queria fazer jornalismo, mas acabou escolhendo outra profissão e hoje trabalha como assistente social no terminal do Tietê, onde ouve apenas histórias que não acabam bem.
A edição da Cosac & Naify é – que surpresa! – um encanto à parte. As páginas fininhas e amarelas nos lembram das listas telefônicas que há muito desapareceram, com todas as suas informações, dados, nomes. O Tietê, por sua vez, continua repleto de idas e vindas. E do desejo de voltar, como resume bem a autora logo no começo do livro, em um dos meus trechos favoritos.
“Ás vezes vem gente procurando amigos desaparecidos. Mostram a foto e perguntam se já encontraram”, conta Andréia, que trabalha no setor de Achados e Perdidos. De fato, muitos pernambucanos, baianos, peruanos ou mineiros perderam-se há algum tempo em São Paulo e continuam deslocados, reprimindo a cada dia o desejo de voltar para casa (depois, talvez, quando os guris crescerem e sair a aposentadoria).
Tainara Machado
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16 de junho de 2016 at 22:49
Esse livro é delicioso, super engraçado e concordo quando você diz que uma das melhores partes é acompanhar as moças do balcão de informações. Ah, e depois que li o livro, nunca mais passo pelo Tietê do mesmo jeito. Sempre espero para ouvir o “Álvaro”…