Na semana passada, com a divulgação da quarta edição dos Retratos da Leitura no país, nos deparamos mais uma vez com a triste, mas não muito surpreendente, notícia de que o Brasil é um país que lê pouco e que esse pouco é de uma qualidade bastante duvidosa.
Segundo o levantamento, 44% dos brasileiros simplesmente não leram nenhum livro nos últimos três meses. O livro mais citado, não tem concorrência, é a Bíblia. Entre as obras mais marcantes, temos o onipresente O Pequeno Príncipe e também alguns títulos juvenis, como Cidade de Papel. Em quinto lugar, não muito longe da Bíblia, apareceu Cinquenta Tons de Cinza, como bem reparou uma amiga. Brasil, o país dos contrastes.
Definitivamente, não são o que o romancista americano Jonathan Franzen chama de “livros sérios”. No entanto, acredito fortemente que os livros não tão bons assim – e até mesmo os ruins – tem um importante papel na formação de leitores. Afinal, ninguém começa a vida lendo Flaubert.
Ler é, antes de mais nada, um hábito. Eu, por exemplo, nunca tive televisão no quarto. Então o que fazia antes de dormir era pegar um livro até cair no sono (desde então inventaram o celular, o que dificultou um pouco esse processo). E quanto mais lemos, maior descobrimos que é o universo de livros a ser desbravado. Com autores mais interessantes. Mais desafiadores. E daí a levar um livro até no supermercado é um pulo.
Em Como Ficar Sozinho, Franzen fala (mal) dos hábitos modernos e defende a necessidade de solidão. Para ele, ler (e escrever) é uma alternativa cada vez mais atrativa em relação a esse mundo hiperconectado.
O autor questiona, porém, como se dá o processo de formação de leitores, com base no trabalho da pesquisadora Shirley Brice Heath. Segundo ela, duas coisas são necessárias para que uma pessoa tenha interesse em literatura. Franzen relata:
Primeiro, o hábito da leitura de obras importantes deve ter sido “solidamente moldado” desde a infância. Em outras palavras, seria preciso que sua mãe ou seu pai, ou ambos, fossem leitores de livros sérios e tivessem encorajado a criança a fazer o mesmo.
Concordo que o ambiente familiar é importante influência nesse processo. Qualquer um que acompanhe minimamente o desenvolvimento de uma criança sabe que elas são esponjas. Imitam absolutamente tudo o que você faz, de trejeitos a hábitos. Portanto, a chance de uma criança (e adulto, posteriormente) que nunca teve livros em casa à disposição, com pais que mal folheiam revistas, se tornar um grande leitor existe, mas é pequena.
Ter um pai leitor, no entanto, não é suficiente para que alguém se torne um devorador de livros por toda a vida, pondera Franzen, com base no trabalho de Heath. A pesquisadora identificou um segundo ponto importante na formação de leitores: quando jovens, eles precisam encontrar alguém com quem possam compartilhar seu interesse. Para muita gente, diz, isso só acontece na faculdade. Como foi o meu caso com a Mari e vários outros colegas.
No entanto, não me encaixo perfeitamente em nenhuma das hipóteses. Cresci em uma casa de pais moderadamente leitores. O acervo literário não tinha grandes clássicos, mas era suficiente para me entreter até a idade em que eu tinha discernimento o bastante para escolher meus próprios livros. Não lembro, honestamente, que meus pais lessem qualquer coisa para mim, mas eles me incentivavam. Meu irmão cresceu na mesma casa, mas preferia o videogame. Também tive no colégio poucos amigos que gostassem muito de ler (enquanto escrevo esse texto, na verdade, só lembro de uma).
Talvez, a grande influência na minha vida de leitora tenha sido mesmo alguns professores e a escola, que tinha uma feira do livro e uma biblioteca bem razoável. Acho que o trabalho poderia ser melhor: eu era um público-alvo fácil, porque já estava interessada, mas creio que era plenamente possível, com outras escolhas, despertar a atenção de mais potenciais leitores. Eventualmente, até com livros que podem estar na alçada dos “ruins”.
Tive duas professoras que me marcaram, entre erros e acertos. Na quinta série, a Maria da Graça nos apresentou seu ótimo faro para leituras “populares” entre crianças de dez, onze anos. Lemos A Droga da Obediência, e quase todo mundo acabou devorando os outros volumes da série Os Karas, do Pedro Bandeira. Foi naquele ano também, num caldeirão de brincadeira na feira do livro da escola, que descobri um tal de Harry Potter. A velha edição da Rocco ainda é uma das minhas capas preferidas.
Essa é uma frustração. Nunca vou entender por qual razão as escolas relutam em indicar livros mais populares para o currículo escolar. Por que o preconceito com Harry Potter? É a melhor saga infanto-juvenil, daqueles livros que despertam fantasias e com o qual praticamente todas as crianças em idade escolar conseguem se identificar. Best sellers também podem ser boa leitura.
Uma outra professora, quando já éramos um pouquinho mais velhos, nos apresentou grandes clássicos mundiais, mas sempre acreditei que ela escolheu mal. Na lista estavam A Metamorfose, de Franz Kafka, e O Visconde Partido ao Meio, de Italo Calvino. Peguei trauma dos dois autores.
Por outro lado, todo mundo amou Capitães de Areia, do Jorge Amado. Ali, era possível, de algum modo, se enxergar naqueles personagens e transpor aquelas histórias para o nosso cotidiano. Algo que definitivamente não era possível com A Metamorfose.
Nos intervalos entre um livro escolar e outro, li muita coisa ruim, que eu encontrava na biblioteca do colégio. Uma série de romances água com açúcar que, acho, se assemelham à série Gossip Girl hoje. Os livros do Jô Soares. O Caçador de Pipas. Bridget Jones. Sidney Sheldon. Defendo que todos eles têm o seu valor, embora não necessariamente no campo literário.
Não sei ao certo quando comecei a ler o que Franzen chama de ‘romance sério’ e nem por quê. Mas creio que o batalhão de livros de pouca qualidade nos meus primeiros anos como leitora serviram de porta de entrada para aquele enorme universo que estava à disposição nas livrarias. Afinal, a distância percorrida da seção dos best sellers para a de literatura não costuma ser muito grande.
Tainara Machado
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25 de maio de 2016 at 23:03
Esse lance de “literatura de qualidade” e “livros sérios” é bem problemático. Primeiro, como dizer que algo é bom? Tem qualidade? Aos olhos de quem? Da crítica alicerçada no tradicionalismo? Essa é uma discussão muito recorrente na própria academia e volta e meia saem muitas brigas.
Particularmente, concordo com a Tainara. Não entendo o motivo de tamanha relutância em incluir best sellers já para as crianças. O gosto pela leitura surge aos poucos e de que adianta uma pessoa cheia de conhecimentos e sabedoria chegar e dizer que só um Flaubert é aceitável? Na USP há um grupo de estudos de Literatura Infanto-juvenil e, em uma das aulas, a docente havia sugerido seminário sobre Harry Potter. Narizes foram torcidos, mas estamos falando da iniciação dos jovens no mundo dos livros e, definitivamente, não começará com Faulkner!
Como o próprio Franzen diz, a solidez do hábito da leitura vem da infância, mas acho simplista demais um estadunidense, filho de europeus e que recebeu uma educação ímpar em relação a grande parte da população mundial defender essa necessidade sem levar em conta as inúmeras variações culturais, os déficits de alfabetização familiar (saber ler e escrever está muito aquém de alfabetização mesmo) e a relatividade do conceito de qualidade.
Acho, por parte da elite literária pensante, muito cômodo falar sobre o que é literatura de qualidade e não estar aberta a verificar as particularidades de cada situação e cultura ou estudar o porquê determinados livros acabam virando fenômenos de vendas.