Até onde somos capazes de chegar em busca da verdade? Essa é a grande saga de Juan de Vere, narrador-personagem de Assim começa o mal, romance de Javier Marías, lançado no segundo semestre de 2015 aqui no Brasil.
Na Madri pós-ditadura franquista, o jovem De Vere se vê envolvido em uma história pautada por desejos, rumores e segredos. Juan trabalha como assistente de Eduardo Muriel, cineasta que já viveu seu auge e tem um casamento conturbado, cheio de mistérios. Por conta de suas funções, Juan fica hospedado durante longos períodos na casa dos patrões e, aos poucos, passa de testemunha a ator coadjuvante da jornada dessa família.
Além da história íntima dos Muriel e de De Vere, o livro traz a cena política da Espanha dos anos 80 – um país imerso no dilema de como enfrentar as recordações dos anos truculentos da ditadura. Silenciar e deixar pra trás? Reescrever as cenas mais tristes? Amenizar os fatos em nome da boa convivência? Julgar e nomear vilões e heróis?
O que mais me chamou atenção no livro é que Marías trabalha essas duas frentes – o íntimo e o público – pelo mesmo fio condutor: os efeitos da passagem do tempo. O esquecimento é a resposta mais óbvia diante desse tema. Mas Marías não é óbvio. Ele nos lembra que, no caminho para o esquecimento, há vários elementos (que são terreno fértil para um romance): os boatos, os interesses, os julgamentos e os impulsos.
Para cada fato, há um olhar: o de quem viveu, o de quem viu e o de quem ouviu. Marías escreve:
Na realidade, tudo o que se conta, tudo aquilo a que não se assiste é só rumor, por mais que seja envolto em juras de autenticidade. E não podemos passar a vida dando bola para isso, ainda menos agindo de acordo com o seu vaivém. Quando a gente renuncia a isso, quando renuncia a saber o que não se pode saber, talvez então, parafraseando Shakespeare, talvez então comece o mal, mas em compensação o pior fica pra trás.
O livro é como uma grande confissão. Em certo momento, o narrador até dialoga com o leitor, pedindo que este não espalhe o seu segredo.
Na verdade, não é grave, não foi, suponho que não prejudiquei ninguém. Mas é melhor que por via das dúvidas eu continue calando, para nosso bem, pelo meu, talvez o das minhas filhas e sobretudo o da minha mulher. E quando aqui o disser (mas aqui não é realidade), todos vocês terão de guardá-lo e calar também (…). Nem uma palavra disso vocês mencionarão, por favor, se outros lhe pedirem para ouvir minha história. Só o fariam para se entreter ou para acumular dados inúteis, que esqueceriam mal os tivesse espalhado indiferentemente, mais além e um pouco mais.
Ao se referir a tudo que já escreveu, ele diz “aqui não é a realidade”, o que nos faz pensar que sua narrativa é mais uma confissão a ele mesmo, para aliviar a culpa, lutar contra o esquecimento ou até mesmo reescrever a história. Enquanto conta o que viveu, ouviu e viu, De Vere levanta a todo momento esta questão: quando uma verdade nos parece inalcançável, temos a liberdade de inventá-la? De antemão, ele parece se justificar por algum fato que não seja fiel à realidade.
Neste livro, Marías nos mostra que o tempo pode até ajudar, mas esquecer é uma decisão pessoal, e o caminho que leva a esse estado é cheio de curvas e obstáculos. Embora não seja possível apagar o que existiu, há como estabelecer o esquecimento e conviver com ele. A grande pergunta que fica, e que o título já nos anuncia, é: que mal isso faz?
Mariane Domingos
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