Sabia pouco, mas pelo menos sabia isto: que ninguém fala pelos outros. Que, mesmo que queiramos contar histórias alheias, terminamos sempre contando nossa própria história.
Para ser bom, um livro não precisa ser grande, ter trama complexa, muitos personagens ou abusar das palavras difíceis. Ele pode ser tão simples quanto Formas de Voltar para Casa, do chileno Alejandro Zambra.
Como diz Alan Pauls na resenha que ocupa a orelha da edição da Cosac Naify (essa da foto), o tom é a grande invenção do Zambra romancista. E ele é baixo. São frases curtas, diretas, mas cheias de sentido e interpretações, como quando, logo na primeira página, o narrador relembra as brigas dos pais. “Ela dizia cinco frases e ele respondia com uma única palavra. Às vezes dizia, cortante: não. Às vezes dizia, à beira de um grito: mentira. E às vezes, inclusive, como os policiais: negativo”. Zambra, que já apareceu por aqui, é fonte quase inesgotável para o Marque a página.
Se o tom é baixo, os sentimentos são sutis, quase sussurrados. O livro começa com as lembranças do terremoto que atingiu o Chile em 1985, noite na qual o narrador, sem nome, conheceu Claudia, “o nome de noventa por cento das mulheres da minha geração”. Ela é um dos tantos “personagens secundários”, título do primeiro capítulo do livro, que teve a vida virada do avesso por um acontecimento que parecia estar fora do presente, de tão longe do dia a dia daquele bairro no subúrbio de Santiago: o golpe que levou Augusto Pinochet ao poder.
Com curiosidade, parecendo se tratar de apenas mais uma brincadeira de criança, o narrador obedece ao pedido dela, três anos mais velha, para que espie seu tio, Raúl. Só vai entender que assim partilhou de algumas das muitas cicatrizes que Claudia leva desse período muitos anos depois. O que ele, por sua vez, guarda do período mais sombrio da história recente do Chile é, pelo contrário, a falta de marcas indeléveis desses anos. Em outro momento, pensa, em meio a uma conversa com colegas de faculdade, que “era o único que provinha de uma família sem mortos, e essa constatação me encheu de uma estranha amargura: meus amigos tinham crescido lendo os livros que seus pais ou seus irmãos mortos tinham deixado em casa. Mas na minha família não havia mortos nem havia livros”.
Em busca de um passado que traga pertencimento, Zambra mistura também elementos biográficos, principalmente quando assume sua voz de escritor, nos trechos de cunho mais autobiográfico. É ficção dentro da ficção, um recurso já batido, mas bem usado, neste caso. O chileno nos ensina que, para quem escreve, é quase impossível se dissociar das próprias memórias, do cotidiano, dos personagens caseiros. Assim, os mesmos trechos se repetem, mas com novos significados, como quando a mãe se descobre leitora em idade adulta, uma delícia de diálogo nas duas versões.
Zambra lembra, então, da abertura de Léxico Familiar: “Neste livro, lugares, fatos e pessoas são reais. Não inventei nada: e toda vez que, nas pegadas do meu velho costume de romancista, inventava, logo me sentia impelida a destruir tudo o que inventara”. Enquanto os personagens continuam a procura do lugar que ocuparam no passado, Zambra segue sua busca por cicatrizes nas dores dos outros.
PS: Quem me indicou este livro foi uma amiga do trabalho. Ela poderia ganhar royalties por livros vendidos, tamanha a escola de seguidores do chileno que criou. Mas leitor de carteirinha é assim. Não basta gostar sozinho, tem que popularizar.
Tainara Machado
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