Os personagens destas páginas não são homens. A sua humanidade ficou sufocada, ou eles mesmos a sufocaram, sob a ofensa padecida ou infligida a outros.
Esse trecho está em É isto um homem?, um daqueles livros que nos deixam pensativos, porque a última página está longe de ser o fim da história. Nele, o autor Primo Levi conta sua própria experiência como um judeu italiano em Auschwitz. Nenhuma das situações que ele relata é carregada de autopiedade ou sentimentos de ódio e vingança. Desde o título, Levi já dá o tom que pautará o livro: a perplexidade.
Perplexidade diante de até onde a humanidade pode chegar (e chegou), tanto os que infligem o sofrimento quanto os que o padecem. Em alguns momentos, parece até que falta emoção na narrativa de Levi. Mas como exigir emoção quando sua condição humana é colocada em xeque? Não é possível fazer alguém que acorda para viver compreender o que é acordar todos os dias para sobreviver.
A certa altura do livro, Levi diz que, nos raros momentos em que se lembrava de sua vida antes de Auschwitz, não imaginava como poderia explicar o que acontecia ali ao seu antigo eu. As recordações dessa época, que já parecia tão distante, aumentavam seu sofrimento, pois eram como um lampejo de consciência. Consciência de que ele tinha perdido tudo, desde os aspectos físicos até os morais, que caracterizavam sua condição humana. Essa mesma perda ele identificava naqueles que praticavam as agressões. Afinal, eles estavam ali, contribuindo para que aquele sistema desumano se perpetuasse.
Levi é um verdadeiro contador de histórias. Ele sabe como envolver o leitor com os personagens e como usar os fatos a favor de suas reflexões. Fui instigada a lê-lo por um artigo intitulado The art of witness, publicado na revista americana The New Yorker.
Lá descobri um pouco mais dos vários eus de Levi – antes, durante e depois de Auschwitz – e me encantei com todos. Um sobrevivente que lidou ao longo de sua vida com diversos tipos de sentimento – perplexidade, culpa, inquietação – e que, para nossa sorte, expressou tudo isso em um legado literário de primeira qualidade. Já estou pronta para ler a sequência dessa história, no livro A Trégua.
Mariane Domingos
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