Gosto de escritores que enxergam literatura onde parece existir apenas banalidade. Em outras palavras, gosto de Alan Pauls.
Terminei há pouco de ler sua trilogia (História do pranto, História do cabelo e História do dinheiro), que aborda de maneira muito original um capítulo complexo e pesado da história argentina – os anos 70.
Em cada um dos livros, esses elementos supostamente banais que aparecem nos títulos funcionam como um gatilho para as memórias do período. Proust tinha suas madeleines. Pauls tem as lágrimas, o corte de cabelo e os maços de dinheiro.
Seus personagens não têm nomes e, ainda assim, ao final do livro, parecem ser nossos amigos íntimos, tal a profundidade e o ritmo frenético com que suas aventuras e desventuras, sempre conectadas de alguma forma ao pranto, ao cabelo ou ao dinheiro, nos são apresentadas.
Em uma única página, às vezes em um único parágrafo, Pauls viaja com naturalidade pelo tempo e pelas várias fases da vida. Não há interrupções evidentes, como a marcação de um novo capítulo ou a referência a uma data. Sua narrativa não se baseia na ordem cronológica, mas sim nas conexões de sentimentos e nos arroubos da memória.
Em entrevista ao programa Sangue Latino, comandado por Eric Nepomuceno no Canal Brasil, Pauls fala um pouco sobre como encara a memória. Ele a vê como uma “faculdade humana genial”, mas supervalorizada, pois parece que as pessoas hoje têm “quase que uma obrigação de recordar”.
Na trilogia, ao escolher protagonistas com apegos a elementos banais, Pauls parece retirar esse peso. Ele nos convida a recordar sim, mas com naturalidade e sem temer o esquecimento, já que, como ele mesmo diz, esses opostos caminham sempre juntos, limitando um ao outro.
Para quem ficou curioso, deixo aqui um trechinho do segundo livro da trilogia, em que o herói, um obcecado pelo corte de cabelo perfeito, descreve o objeto de sua obsessão:
Aprende isto também: o efeito de droga de certos cortes. A injeção de brio e energia, o entusiasmo, o ímpeto que o transforma cada vez que sai de um salão. Pouco importa como tenha sido o corte. O efeito é prévio; ele o percebe – ou melhor, sente seu impacto, porque é como um shot – antes de se sentir capaz de emitir qualquer juízo de valor sobre o corte, com a primeira visão de si mesmo com o cabelo cortado que tem já fora do salão. Como se essa mudança de contexto, ao lançar no mundo o novo estado de sua cabeça, desse ao corte a dose de realidade, a vida que o cenário do salão de beleza sempre mantém numa espécie de suspensão, como uma promessa. É simples: cortam seu cabelo e ele rejuvenesce.
Dá ou não dá vontade de saber tudo que há por trás do pranto, do cabelo e do dinheiro?
Mariane Domingos
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